A intemet produziu transformações
espetaculares nas sociedades na última década, mas a mais profunda
delas só agora começa a ser estudada pela ciência. A facilidade e a
rapidez com que se encontram informações na rede, sobre qualquer assunto
e a qualquer hora, podem estar alterando os processos de cognição do
cérebro. Até a popularízação da web, as principais fontes de
conhecimento com que todos contavam eram os livros e, evidentemente, a
própria memória do que se aprende ao longo da vida. A internet mudou esse panorama: a leitura em profundidade foi substituida peIa massa de informações, em sua maioria superficiais, oferecidas pelos sites de busca, blogs
e redes de relacionamento. A memória, por sua vez, perdeu relevância -
para que puxar pela cabeça para se lembrar de um fato ou do nome de uma
pessoa se essas informações estão prontamente disponíveis no Google, a
dois toques do mouse? Quanto mais dependemos dos sites
de busca para adquirir ou relembrar conhecimentos, mais nosso cérebro
se parece com um computador obsoleto que necessita de uma memória mais
potente.
Um dos estudos mais completos sobre essa mudança determinada pela internet
na forma como assimilamos e processamos conhecimento foi divulgado na
semana passada. Conduzido pela psicóloga Betsy Sparrow, da Universidade
Columbia, e por outros dois colegas, ele mostra que a memória
processada pelos 100 bilhões de neurônios do cérebro está se adaptando
rapidamente à era da informação imediata. Hoje, diz uma das conclusões
da pesquisa, nós nos preocupamos menos em reter informações porque
sabemos que elas estarão disponíveis na intemet. Em lugar de guardar conhecimentos, preferimos guardar o local na rede onde eles estão disponíveis. A internet
se tornou uma memória externa, o que faz com que as informações sejam
armazenadas não mais no nosso cérebro, mas coletivamente. "Desenvolvemos
uma relação de simbiose com as ferramentas de nosso computador, da
mesma forma que com as pessoas de nossa família", disse Betsy Sparrow a
VEJA.
Na frase genial do cientista brasileiro Miguel Nicolelis
"o cérebro é uma orquestra sinfônica em que os instrumentos vão se
modificando à medida que são tocados". Dificilmente alguém conseguirá
explicar essa plasticidade com uma imagem mais exata e intrigante.
Imagine-se um violino cerebral que, tocado de forma medíocre por anos a
fio, vai se transformando aos poucos em um berimbau. Ou um piano
marrelado por um músico de uma nota só que, ao fim e ao cabo, vira um
bumbo. A lição básica de Nicolelis é que o cérebro precisa de impulsos
para se desenvolver quanto mais variados, complexos, harmônicos e
desafiadores eles forem, mais humanamente melhor o cérebro se tornará.
Essa. corrida para a perfeição não se completa nunca. Por definição.
Quanto mais o cérebro se modifica pela qualidade dos impulsos que
recebe, melhor e mais eficiente ele se toma, o que aumenta sua
prontidão para processar informações ainda mais intrincadas. Portanto,
o cérebro é uma estrutura que aprecia desafios e se transforma com
eles. Facilitar sua atividade pode, como mostra o estudo da
pesquisadora Sparrow, torná-Io mais preguiçoso e menos ávido por se
aperfeiçoar. Sparrow se debruçou mais sobre os efeitos na atividade
cogniriva da facilidade que a internet oferece a seus
usuários de encontrar praticamente qualquer informação histórica,
científica ou literária já produzida pela humanidade e estocada de
forma digital. Essa memória acessória externa descomunal em prontidão
permanente e de fácil acesso é algo inédito na caminhada evolutiva do
cérebro humano. Ela oferece um conforto tal que nenhuma geração passada
teve nesse mesmo volume e riqueza de informações. Sparrow se pergunta -
mas não responde totalmente na pesquisa que acabou de publicar - que
tipo de efeito sobre a plasticidade do cérebro a internet, e
mais precisamente os mecanismos de buscas como o Google, pode exercer.
Seria um efeito equivalente ao que tem para os músculos de um atleta
ele deitar-se em um sofá com uma lata de refrigerante na mão e os olhos
pregados na televisão? Ou, de outra forma, a facilidade de estocagem e
recuperação de virtualmente qualquer tipo de informação pode, com o
passar do tempo, atrofiar os instrumentos da orquestra cerebral humana
especializados na busca e seleção de informações? Sem saber, talvez,
Betsy Sparrow abriu uma linha nova de investigação cientifica que tem um
grande futuro pela frente.
A pesquisa foi conduzida em quatro etapas, com alunos
das universidades Harvard e Colúmbia. Os panicipantes tiveram de
memorizar afirmações triviais, daquelas tipicamente encontradas no
Google, Os alunos informados de
que não teriam um novo acesso às informações conseguiram memorizá-Ias em maior número do que o grupo que sabia que as frases estariam na internet. Segundo os autores do estudo, isso mostra que, quando as pessoas sabem que terão acesso fácil a uma informação, não se preocupam em memorizá-la.
que não teriam um novo acesso às informações conseguiram memorizá-Ias em maior número do que o grupo que sabia que as frases estariam na internet. Segundo os autores do estudo, isso mostra que, quando as pessoas sabem que terão acesso fácil a uma informação, não se preocupam em memorizá-la.
A pesquisa de Sparrow levanta entre muitos cientistas
e educadores o temor de que estejamos nos transformando em terminais
de informações, e não em agentes capazes de processar conhecimento por
meio da memória e do raciocínio. A neurocientista Maryanne Wolf,
diretora do Centro de Pesquisas de Leitura e Linguagem da Universidade
Tufis, de Boston, trabalha com o desenvolvimento da leitura em
crianças. Segundo ela, o cérebro é capaz de se adaptar e formar sinapses
entre os neurônios de acordo com o tipo de leitura que se faz. Em seu
livro Proust and lhe Squid: The Story ano Science of lhe Reading Brain
(Proust e a Lula: a História e Ciência do Cérebro que Lê), Maryanne
demonstra preocupação em como a leitura tem se desenvolvido. Ela diz:
"Livros sempre foram uma forma de se aventurar além das palavras,
trabalhar a imaginação e crescer intelectualmente. Porém, na era da internet, passou-se a ler rapidamente, sem análise nem crítica. Como consequência, o cérebro começou a ter dificuldades na hora de ler com concentração". 'Na sua conclusão. os jovens estão desenvolvendo menos as conexões de seus neurônios.
Um estudo feito pela University College London
mostrou que, mesmo no ambiente acadêmico, o estilo Google de assimilar
conhecimento se disseminou. O estudo mapeou os hábitos dos usuários de
dois sites com grande audiência entre universitários: o da Britsh library e o de uma associação de instituições de ensino inglesas. Os endereços dão acesso a e-books, artigos e pesquisas. O estudo mostrou que a maioria dos frequentadores dos sites
acessava muitos itens do conteúdo, mas apenas uma ou duas páginas de
cada um deles. O padrão era pular rapidamente de um artigo ou um livro
para outro, o que constitui o que os pesquisadores chamaram de power browsing - em português, "navegação mecânica". "As pesquisas mostram que nossa vida on-line
é capaz de afetar a neuroquímica de nosso cérebro", disse a VEJA a
psicóloga americana Sherry Turkle, professora de estudos sociais e
ciência da tecnologia do Instituto de Tecnologia de Massachusens. Os
céticos das teorias de que a intemet está mudando radicalmente o
cérebro humano sustentam que a história está cheia de exemplos de novas
tecnologias que foram recebidas com uma desconfiança que,
posteriormente, se mostrou infundada. Na Grécia Antiga, Sócrates
lamentou a popularização da escrita. Ele defendia a tese de que a
substituição do conhecimento acumulado no cérebro pela palavra escrita
tornaria a mente preguiçosa e prejudicaria a memória. O advento da
imprensa de Gutenberg, no século XV, suscitou prognósticos de que a
facilidade de acesso aos livros promoveria a preguiça intelectual. Pode
ser que esses paralelos sejam corretos e tranquilizadores. Tanto a
escrita quanto a imprensa potencializaram a capacidade cognitiva
humana, especialmente pela facilidade na troca de informações entre
mais gente. Talvez a salvação de nossa orquestra cerebral nos tempos da
internet venha pelo mesmo caminho: a intensa troca de conhecimento e experiências.
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