O
terrorismo é o grande assunto do momento. Ele afetou as bolsas
de valores e as perspectivas de crescimento das economias, a começar
pela norte-americana -- a mais poderosa do globo -- e vem suscitanto
uma série de discussões sobre como evitá-lo,
com algumas propostas que, se adotadas, vão certamente alterar
algumas de nossas rotinas do dia a dia. E também a ordenação
geopolítica mundial começa a sofrer significativas
modificações em função do desenrolar
dos acontecimentos, em especial da luta contra o terrorismo. Tudo
começou, como se sabe, com os recentes atentados do dia 11
de setembro deste ano, que destruíram as duas torres do World
Trade Center, em Nova Iorque, e parte das instalações
do Pentágono, em Washington. A reação norte-americana,
ao contrário do que temiam alguns -- e do que sugeriam as
primeiras declarações atabalhoadas do Presidente George
W. Bush --, foi relativamente cautelosa na medida em que essa superpotência
militar procurou, antes de iniciar uma contra-ofensiva, cimentar
toda uma aliança internacional de apoio. Quase um mês
após os atentados, as forças armadas estadunidenses
-- com o aval da ONU e com a colaboração ativa (envio
de tropas) ou passiva (apoio logístico) de inúmeros
outros países -- iniciaram uma série de fortes bombardeios
sobre o Afeganistão, país onde se localizam o quartel
general e vários campos de treinamento do grupo terrorista El
Quaeda [A base], liderado pelo milionário saudita Osama
Bin Laden, considerado pelas organizações de inteligência
dos Estados Unidos, do Reino Unido e de outros Estados como o responsável
pelo planejamento daqueles atos destrutivos. Bin Laden nega qualquer
envolvimento naqueles atentados -- algo, por sinal, coerente com
o posicionamento do terrorismo atual ou pós-moderno, que quase
nunca assume a autoria de suas ações --, mas o seu
envolvimento com o terrorismo é patente (algo que ele próprio
admite, inclusive as ameaças que fez contra os Estados Unidos
no início deste ano, prometendo uma onda de atentados caso
o novo governo desse país continuasse com a sua política
de abandonar os palestinos e deixar Israel à vontade) e ele
já foi exaustivamente apontado como o responsável por
alguns outros violentos atentados ocorridos anteriormente.
O objetivo
destes comentários é analisar o que é o terrorismo
atual ou pós-moderno e realizar algumas inferências
a respeito do seu significado na nova ordem mundial, que mais uma
vez se redefine neste momento. Não pretendemos analisar exaustivamente
este episódio específico -- os atentados de 11 de setembro
e a reação norte-americana --, que por sinal ainda
não chegou ao seu término (nem mesmo no que diz respeito
ao futuro do Afeganistão). Provavelmente o governo deste país
vai mudar, com a saída do Teleban e a entrada
de uma coalisão formada pela Liga do Norte e por representantes
do antigo rei, do Paquistão, do Irã (afinal 20% da
população afegã é constituída
por muçulmanos xiitas, que foram fortemente reprimidos no
governo do Teleban; e o apoio iraniano é fundamental para
amenizar os protestos islâmicos) e talvez até da facção
moderada do Teleban, que nestes últimos dias vem procurando
se distanciar do terrorismo e passou a denunciar o "exagerado
poder" do El Quaeda no Estado afegão. Mas isso
não é o fundamental -- e nem mesmo o futuro de Bin
Laden e do seu grupo terrorista (que provavelmente vai continuar
mesmo sem ele). O essencial são as mudanças permanentes
que todo esse episódio deverá ocasionar nas
relações (econômicas, político-diplomáticas
e militares) internacionais. O terrorismo -- que constitui verdadeiras
redes (CASTELLS, 2001) e não se resume a este grupo referido
-- passou a ocupar o antigo papel do "comunismo", o de "inimigo" ou
ameaça maior à continuidade do sistema global. Qualquer
que seja o desfecho deste episódio específico, a luta do e contra
o terrorismo, infelizmente, deverá prosseguir por anos
ou talvez até décadas. E, mais uma vez (pois isso já ocorreu
anteriormente, em outros momentos nos quais ocorreram sucessivos
atentados ou "ondas" terroristas), o movimento terrorista
deverá produzir um efeito contrário ao que almeja:
ao invés de desestabilizar as instituições dominantes
(em especial o Estado), as fortalecerá; ao invés de
gerar mais pânico, insegurança e desestruturação
social (algo que de fato produz, a curto prazo), ele deverá a
médio e a longo prazo fortalecer e até legitimar novas
e mais severas medidas de segurança e de vigilância
sobre a vida cotidiana das pessoas em geral.
2. O que é o terrorismo pós-moderno?
O
terrorismo é uma forma violenta de protesto (e de tentativa
de desestabilizar algum regime) conhecida desde a antiguidade. Existem
referências a atos terroristas desde a Grécia antiga,
passando pelo Império Romano e por inúmeros outros
momentos da história. Uma primeira e intensa "onda terrorista" ocorreu
no final do século XIX e inícios do XX. Naquele momento
ninguém se sentia seguro e a salvo do terrorismo, confome
relata um estudioso do assunto, Walter LAQUEUR (1996). Em 1894 um
anarquista italiano assassinou o Presidente francês Sai Carnot;
em 1897 anarquistas mataram a punhaladas a imperatriz Elizabeth da Áustria
e assassinaram o Primeiro-Ministro espanhol Antonio Canovas; em 1900
o rei Humberto I, da Itália, foi vítima de outro ataque
terrorista e, no ano seguinte, um anarquista matou o Presidente norte-americano
William McKinley. E não podemos nos esquecer que a Primeira
Guerra Mundial foi deflagrada após o assassinato, em 1914,
de um arquiduque austríaco por um terrorista sérvio.
O terrorismo, assim, é uma ação desesperada
e violenta, feita por grupos (ou eventualmente por um indivíduo)
que almejam mudar alguma coisa na vida política e social --
derrubar um regime, lutar contra uma potência colonialista
ou imperialista, alterar radicalmente os valores de uma sociedade,
alcançar uma independência nacional -- e ele costuma
ser diferenciado da guerra (choque entre Estados) e da guerrilha
(na qual um grupo almeja controlar um território). A principal
finalidade dos atos terroristas é semear o pânico, desestabilizar
as instituições e com isso suscitar mudanças
radicais. Talvez estejamos vivendo uma segunda "onda terrorista" neste
momento, pois existem centenas de grupos terroristas no mundo e os
atentados, ao que parece, estão ficando mais freqüêntes.
Mas
o terrorismo atual -- chamado de pós-moderno ou de global
-- é diferente das formas anteriores. E os atentados terroristas
do dia 11 de setembro último, ao contrário do que escreveu
CHALLIAND (2001), simbolizam muito bem este "novo terrorismo",
em especial pelo planejamento e pelos objetivos, pela natureza globalizada
e pelo uso inteligente da mídia. O "velho terrorismo", em
especial aquele do final do século XIX e inícios do
XX, era formado por organizações anarquistas ou nacionalistas que
tinham propostas políticas bem definidas e em geral assumiam os seus
atos. Elas inclusive tinham orgulho de suas ações --
normalmente assassinatos de autoridades do regime que combatiam --
e acreditavam que uma boa parcela da população os apoiava.
Já o "novo terrorismo", o pós-moderno ou global, não tem um
objetivo político preciso e normalmente as organizações que o praticam
não fazem muita questão de assumir a autoria de inúmeros atos terroristas
(LESSER, 2001), embora ocasionalmente o façam após uma premeditada
demora. O "velho terrorismo" procurava eliminar figuras estratégicas
do regime que combatia, evitando atingir inocentes. Já para o "novo
terrorismo" não há inocentes, todos devem sofrer as consequências
dos atos do regime sob o qual vivem e eventualmente apoiam. (Nem
mesmo as populações que em tese seriam "libertadas" ou "esclarecidas" pelos
terroristas são afinal inocentes que devem ser poupados, pois
na lógica de sua argumentação existe a idéia
de que "quem morre pela causa" deve se sentir realizado).
Além disso, a destruição de edifícios símbolos (como as torres do
WTC ou o Pentágono, dentre outros) e a matança de centenas ou milhares
de pessoas é algo que chama a atenção da mídia e justamente esta é uma
das grandes preocupações do terrorismo pós-moderno. Ele busca a cobertura
por parte da mídia internacional, suas ações só têm sentido no contexto
de sociedades democráticas onde a mídia em geral e em especial a
televisão (que transmite imagens e sons e influencia uma parcela
maior da população) é mais ou menos livre e procura dar uma cobertura
imediata aos acontecimentos considerados "quentes" ou de grande importância.
Podemos até dizer que existe uma relação simbiótica entre o "novo
terrorismo" e a "nova mídia": ambos são globalizados e visam a opinião
pública internacional (que logicamente é mais intensa e influente
nos países desenvolvidos), sem a qual não existiriam; ambos preocupam-se
com o sensacionalismo, com acontecimentos trágicos que têm que ser
(re)produzidos constantemente para prender a atenção do público (como
se sabe, "dá muito mais ibope" uma notícia sobre uma chacina do que
uma outra sobre o avanço da unificação européia ou sobre o perdão
da dívida externa de alguns países pobres). Basta atentar para o
fato de que, nos dias e semanas que se seguiram aos recentes atentados
terroristas nos Estados Unidos, algumas redes de televisão alcançaram
altíssimos e atípicos índices de audiência (algo que permite cobrar
mais pelo minuto de propaganda e conseqüentemente amplia os lucros),
em visível contraste com os preços das ações das empresas em geral
(principalmente das companhias aéreas e de seguros), que cairam bastante
nesse período.
O
terrorismo de inspiração anarquista, intenso no final do século XIX
e no início do XX, praticamente não existe mais. Uma possível exceção
seria a figura isolada do Unabomber, terrorista que agiu durante
cerca de 18 anos nos Estados Unidos e foi capturado em 1996. Mas
mesmo ele pouco se identifica com o anarquismo clássico (a não ser
talvez com o individualismo de inspiração stirneriana), pois este
não é contra o progresso (a eletricidade, as máquinas, a tecnologia
moderna) e sim contra o Estado e as desigualdades sociais. E os anarquistas
atuais -- ou neoanarquistas --, por sua vez, preferem as manifestações
de massas, sejam pacíficas ou até violentas, as quais também se apóiam
na mídia internacional e fazem amplo uso da internet, tais como aquelas
rotuladas equivocadamente como antiglobalização: Seattle, Toronto,
Genebra, Praga, Davos, Porto Alegre, Gênova, etc. Mas eles não são
cúmplices nem simpatizantes do "novo terrorismo", pois este prejudica
a sua causa ao confundir protestos com matanças indiscriminadas e
ao contribuir para a legitimação de novas e mais severas medidas
de segurança e de repressão por parte dos aparatos estatais. Já o
terrorismo de cunho nacionalista ainda sobrevive e é importante em
algumas regiões do mundo, em especial na Espanha -- o ETA -- e na
Irlanda do Norte (com reflexos na Inglaterra) -- o IRA. Mas a princípio
ele não é global(1) e sim circunscrito à região (ou nação)
que pretende libertar e à(s) outra(s) que a domina(m). E ele também
não mata civis de forma indiscriminada, pois uma de suas maiores
preocupações é obter o apoio da opinião pública para a sua causa(2).
As
principais modalidades do terrorismo pós-moderno são as seitas
ou organizações fundamentalistas, apocalípticas e tradicionalistas
(LIFTON, 1999; FLYNN, 2000; LAQUEUR, 1996). Essa é mais uma diferença
essencial entre ele e o "velho terrorismo". Este último -- em especial
o terrorismo anarquista -- era de "esquerda" (e se considerava como "progressista")
no sentido de lutar por uma maior igualdade social, de se opor violentamente
não ao progresso em si, mas sim ao seu usufruto por somente uma minoria
da população. Já o terrorismo pós-moderno é essencialmente conservador
e, ao contrário do que muitos pensam, é radicalmente contrário aos
ideais de igualdade e liberdade para todos. A bem da verdade, normalmente
ele combate esses ideais democráticos, taxando-os de "ocidentais" (num
sentido pejorativo) ou então de"artificiais" e "anti-naturais".
Ele não está nem um pouco preocupado com as desigualdades internacionais
ou com a pobreza ou a exclusão de inúmeros povos e sim com a ameaça
a certos valores tradicionais (religiosos ou não) que considera absolutos:
por exemplo, a superioridade masculina e outros princípios do Islão,
a superioridade do homem branco anglo-saxônico e protestante (no
caso de Timothy MacVeigh, o terrorista de Oklahoma, que praticou
o maior atentado terrorista já visto nos EUA até o dia 11 de setembro último),
a destruição da ordem atual das coisas com vistas à construção de
um mundo novo alicerçado em determinadas crenças religiosas (no caso
da seita apocalíptica japonesa Aum Shinrikyo, que há alguns anos
espalhou o gás sarim no metrô de Tóquio) etc. Sem dúvida que a situação
precária dos palestinos, que piorou muito com os novos governos de
Israel (Sharon) e dos Estados Unidos (Bush), serviu como motivo mais
imediato destes recentes atos terroristas nos EUA, que foram praticados
por grupos (uma verdadeira rede) extremistas islâmicos. Mas confundir
isso com um protesto furioso contra a globalização ou contra as exclusões
e desigualdades em geral, como fizeram muitos recentemente, é não
entender nada sobre tais grupos terroristas e as suas motivações.
Uma
outro traço característico do terrorismo pós-moderno é que
ele não se limita a assassinatos ou explosões isoladas,
que eram as tônicas no "velho terrorismo". Ele é global
-- ele convive com e se alimenta da globalização --
e dispõe de todo um sofisticado arsenal de financiamento e
de artefatos: novos meios de destruição (químicos,
biológicos, tecnológicos), contas bancárias
numeradas na Suiça ou em "paraísos fiscais" e
membros recrutados em vários países (e treinados em
outros), alguns inclusive com um nível educacional elevado
(pós-graduação ou até doutorado em microbiologia,
química, eletrônica, sistemas de redes etc.). Ele é financiado
tanto por contribuições dos membros e principalmente
dos simpatizantes -- muitos dos quais arquimilionários, pessoas
muito bem inseridas no sistema global e que reconditamente combatem
a atual supremacia de determinados valores que detestam -- como também
em alguns casos pela associação com o tráfico
de drogas. Ele dispõe do indispensável apoio de alguns
Estados que os escondem ou até que permitem (ou financiam
em parte) os seus campos de treinamento: como se sabe, nos anos recentes
esse papel foi desempenhado, em maior ou menor proporção,
pelo Sudão, pela Somália, pela Líbia, pela Síria,
pelo Iraque e pelo Afeganistão. E o terrorismo pós-moderno
dispõe de novos e mais potentes instrumentos de ação:
não somente os assassinatos e as explosões, mas também
gases nocivos (como o sarim), agentes biológicos patogênicos
(como o antraz) e talvez até, desde que exista a ajuda de
algum Estado com essa tecnologia, material radioativo e no limite
armamentos atômicos. Devido à grande sofisticação
dos atuais meios de destruição, que mais cedo ou mais
tarde acabam ficando à disposição de grupos
que têm recursos para adquirí-los, o terrorismo torna-se,
pelo menos potencialmente, cada vez mais letal ou até catastrófico
(CARTER, DEUTCH e ZELIKOW, 1998).
3. As redefinições na ordenação geopolítica mundial
Ao
que tudo indica, as conseqüências dos atos terroristas
do dia 11 de setembro serão variadas e permanentes. Os bombardeios
sobre o Afeganistão e a provável troca de seu regime
político constituem apenas uma pequena amostra delas. Um novo
sistema de alianças deverá ser construído a
partir desse episódio. É algo que já estava
latente desde o final da guerra fria, mas que precisava de uma iniciativa
deflagradora. A tradicional rivalidade entre Estados -- e principalmente
entre as grandes potências --, mesmo sem deixar de existir,
deverá se enfraquecer e dar lugar a um sistema de apoio interestatal
e uma luta contra outras alternativas (contra as redes terroristas,
em primeiro lugar, e também contra as máfias, o tráfico
de drogas, determinadas organizações não governamentais
que desestabilizam o poder dos Estados etc.).
A
aceitação da Rússia como parceira do Ocidente
-- ou talvez até como parte deste num futuro próximo
-- é o exemplo mais significativo dessas mudanças.
Isso foi favorecido pela perspicaz política externa de Vladimir
Putin, que ao invés de se opor aos bombardeios norte-americanos
sobre um país estrangeiro (posição tradicionalmente
adotada por Moscou), colaborou com a coalisão liderada pelos
Estados Unidos oferecendo assessoria (e até tropas) e pressionando
as ex-Repúblicas soviéticas que fazem fronteira com
o Afeganistão -- o Turcomenistão, o Tajiquistão
e a Quirguízia -- a aceitarem o uso de seus territórios
como bases de apoio nessa guerra. Com isso cessaram as críticas
do Ocidente em relação aos massacres russos na Chechênia
e esta república rebelde passou a ser vista pelos norte-americanos
e pelos europeus não mais como uma vítima das atrocidades
russas e sim como uma área onde há muitos fundamentalistas
e grupos terroristas. E também algo que até há alguns
meses parecia impossível de ocorrer, hoje tornou-se numa hipótese
viável para os próximos anos ou no máximo para
a próxima década: uma futura inserção
da Rússia na OTAN (WINES, 2001). Somente depois de 10 anos
do final do império socialista soviético, o Ocidente
capitalista começa a eliminar a sua antiga desconfiança
frente à Rússia e começa a ver esse Estado-nação
como um membro de fato do sistema global e inclusive da Europa. Nesse
sentido, o terrorismo no final das contas pode ter sido benéfico
para os interesses econômicos e estratégicos russos.
Um
outro provável ganhador dessas redefinições
geopolíticas é a China. Ela também adotou um
posicionamento de realpolitik, isto é, de perseguir
os seus interesses específicos e esquecer o seu antigo discurso
anti-capitalista e de "simpatia para com os oprimidos".
Nesse sentido, ela procurou ganhar algo em troca de sua aceitação
dos bombardeios sobre o Afeganistão e do seu apoio no combate
aos grupos terroristas. Ela até aproveitou o momento para
intensificar a repressão sobre os grupos islâmicos que
existem na parte oeste do seu território, na região
de Xinjiang. E o governo Bush começou a esquecer o seu discurso
anterior, de considerar a China como o grande "competidor estratégico",
e passou a vê-la como um parceiro na luta contra o terrorismo
e os demais fatores de instabilidade do sistema global. Com isso
fica mais fácil a assimilação da China na OMC
e tendem a diminuir as críticas da mídia ocidental
contra a brutal repressão promovida pelas tropas chinesas
no Tibete e em outras áreas onde há etnias que almejam
uma libertação nacional. Mas o grande sonho ou objetivo
geoestratégico da China ainda está distante e, pelo
menos até o presente, não foi incluído na pauta
das negociações entre Washington e Pequim: a incorporação
de Taiwan.
A
ONU, paradoxalmente (pois afinal ela foi criada para evitar as guerras
e não para lucrar com elas), deverá ser mais uma ganhadora
com o desenrolar da luta contra o terrorismo. Os Estados Unidos em
meados de setembro último de repente pagaram as suas dívidas
para com essa organização internacional e solicitaram
a sua intermediação no sentido de legitimar os bombardeiros
contra o Afeganistão. Os estrategistas norte-americanos perceberam
afinal que não podem dominar o mundo sozinhos, nem mesmo via
OTAN, e que é necessário haver uma base legal de sustentação,
um fórum internacional que legitime determinadas medidas duras,
que ferem a soberania de inúmeros Estados, na luta contra
o terrorismo. Além disso qualquer ação com o
aval da ONU sempre será mais palatável para os demais
povos do que uma outra decidida exclusivamente pelos Estados Unidos
ou mesmo pela OTAN. E como todos os cinco membros permanentes do
Conselho de Segurança da ONU estão atualmente alinhados
nessa luta contra o terrorismo, fica mais fácil usar essa
organização internacional. Mas o preço ou a
condição para isso é fortalecê-la, o que
a longo prazo poderá ser uma faca de dois gumes na medida
em que algumas resoluções lá aprovadas poderão
não corresponder aos interesses norte-americanos.
Também
a Europa deverá redefinir ao menos parcialmente a sua política
de expansão e construção de um continente unificado.
Como observou muito bem ASH (2001), existem na Europa cerca de 20
milhões de muçulmanos, portanto bem mais que nos Estados
Unidos, e, além disso, o continente está praticamente
cercado pelo mundo islâmico. Isso significa que a Europa deverá se
empenhar muito mais no apaziguamento do descontentamento islâmico,
talvez até encararando com mais seriedade as pretensões
da Turquia de ingressar na União Européia e procurando
se envolver com mais afinco nos conflitos ainda pendentes na região
dos Balcãs. Mas o tema da segurança e do controle sobre
as fronteiras, com vistas principalmente a selecionar quem entra
no continente, deverá ocupar um privilegiado papel que não
tinha antes deste episódio. Isso poderá retardar a
expansão da União Européia. É bastante
provável que primeiro ocorra uma expansão da OTAN para
o leste e, só depois de muitos anos ou décadas, é que
poderá ocorrer a incorporação na União
Européia daqueles países não ocidentais ou não
cristãos.
Quando
aos prováveis perdedores desse episódio, a curto prazo
evidentemente é o regime do Taleban no Afeganistão.
Mas a longo prazo outros participantes do cenário mundial
poderão sofrer algumas conseqüências da ação
preventiva contra o terrorismo, em especial aqueles Estados que escondem
terroristas e/ou permitem a existência de campos de treinamento
terroristas no seu território. Eles deverão ser objeto
de uma pressão muito maior -- e agora não apenas decidida
pelos Estados Unidos e sim pela ONU --, que pode chegar desde a boicote
econômico até a bombardeios localizados. E ao contrário
do que ocorria até há pouco, eles não deverão
mais contar com o apoio -- mesmo que indireto -- de países
como a China ou a Rússia, cada vez mais afinados com o Ocidente,
e talvez nem mesmo com os recursos financeiros oriundos da Arábia
Saudita e de outras economias árabes exportadoras de petróleo,
pois a pressão sobre elas será imensa e também
haverá um maior controle sobre as transações
bancárias internacionais. E provavelmente Israel deverá ser
alvo de uma intensa pressão norte-americana e européia
no sentido de negociar seriamente com a OLP e aceitar a existência
de um Estado palestino autônomo. Isso inclusive já começou
a ocorrer com as recentes declarações de Colin Powell
a respeito da "falta de vontade" das autoridades israelenses
em promover a paz na região. Mas o caso de Israel é complicado
devido ao poderoso lobby judaico nos Estados Unidos e também
em face de todo o seu poderio militar, inclusive a posse de armamentos
nucleares. Além disso, os grupos radicais de ambos os lados,
em especial os fundamentalistas islâmicos que fogem ao controle
da OLP e promovem atentados nos momentos de negociações
ou de trégua, dificultam sobremaneira a resolução
da questão palestina. As pressões ocidentais para Israel
ser mais transigente certamente ocorrerão, mas ainda não
se sabe a intensidade delas -- que será maior no caso dessa
guerra contra o terrorismo continuar gerando intabilidades na região
e no globo e menor se a situação se acalmar em poucas
semanas -- e nem se os radicais de ambos os lados deixarão
que elas surtam algum efeito. Uma outra possível mudança é um
golpe de Estado com a troca do governo -- ou talvez até o
final da monarquia -- na Arábia Saudita. A família
real saudita encontra-se bastante enfraquecida e pressionada por
dois lados fortes: pelos fundamentalistas islâmicos, que a
vêm como demasiadamente atrelada aos interesses ocidentais;
e pelas autoridades norte-americanas, que pensam que esse governo
saudita é ambíguo e pouco confiável, pois, como
assinalou LUTTWAK (2001), uma boa parte do financiamento do terrorismo
islâmico sai de contas bancárias localizadas nesse país árabe
e as investigações sobre ataques terroristas anteriores
-- contra as Khobar Towers, no litoral saudita, em 1996, e
contra o US Cole, no Iêmem, em 2000 -- sempre apontaram
para grupos radicados ou com fortes conexões na Arábia
Saudita, sendo que o governo deste país recusou-se a colaborar
com essas investigações.
Finalmente,
uma série de medidas deverão ser adotadas com vistas
a uma maior prevenção do terrorismo e, infelizmente,
muitas delas poderão restringir o direito de privacidade e
as liberdades individuais. Desde um maior controle sobre aeroportos
e alfândegas até uma maior vigilância sobre as
transações financeiras internacionais, passando por
novas medidas de segurança nos aviões (portas blindadas
que vedem o acesso dos passageiros à cabina de comando, mecanismos
que impossibilitem o desligamento das comunicações
com as torres de controle etc.), deverão ser operacionalizadas
nos próximos anos. Também a internet e as telecomunicações
internacionais deverão ser objeto de novas medidas de vigilância
(novos sistemas de escuta, novos softwares para detectar certas palavras
chave, etc.), assim como os laboratórios e centros de pesquisas
em física nuclear e em microbiologia. Isso sem contar as maiores
pressões internacionais, agora com o aval da ONU, sobre os
Estados que escondem terroristas e/ou sediam os seus campos de treinamento.
Tudo isso, é lamentável dizer, deverá contar
com o apoio de grande parte da opinião pública, em
especial aquela dos países desenvolvidos, que sofreu uma espécie
de paranóia com esta crise e apoia todo um clamor por mais
segurança. Mas no final das contas o terrorismo não
vai cessar -- no máximo poderá ser mais controlado
e reduzido --, pois ele é indissociável deste novo
mundo globalizado com as permanências das inúmeras diversidades
sócio-econômicas e alteridades culturais (as quais, é bom
ressaltar, são positivas e não deploráveis)
e com todo um avanço tecnológico que por um lado melhora
a qualidade de vida de muitos e, por outro lado, possibilita a outros
tantos o acesso a novos e mais sofisticados meios de destruição.
4. O episódio e as suas leituras
Os
atentados de 11 de setembro e os bombardeios ao Afeganistão
deram origem a inúmeros artigos, reportagens e entrevistas veiculados
pela mídia. Alguns poucos são de excelente qualidade,
porém, a maioria tão somente reproduziu determinados
estereótipos que via de regra pouco elucidam a questão e tão
somente refletem determinados valores de quem os profere. Uma boa
parcela deles é maniqueísta: ao invés de procurar analisar os
diversos aspectos (ou pelo menos algum deles) da problemática,
eles imediatamente assumem um lado (visto como o "correto" ou
o "bem") e passam a desancar o outro lado (o "incorreto").
Muitos afirmaram reiteradamente que os atentados seriam uma decorrência
das desigualdades internacionais ou do capitalismo globalizado. Outros
proclamaram que o seu significado estaria numa "vingança dos excluídos" da
globalização ou do império norte-americano. Alguns ainda, uma minoria
de evangélicos, os exorcizaram como uma decorrência do "excesso de
liberdade" e dos exageros das conquistas feministas, homossexuais
e de outras minorias. Também se enxergou nesse episódio mais um capítulo
do "choque de civilizações", com o islamismo enfrentando à sua maneira
o Ocidente. E um professor de estratégia e política internacional
chegou a proclamar, numa entrevista televisiva, que eles foram uma
consequência da "nova política isolacionista de Washington", na qual
os Estados Unidos teriam deixado de atuar como uma superpotência
na resolução dos problemas mundiais e inclusive teriam "diminuído
os gastos militares". E, por fim, muitos dos que comemoraram, discreta
ou ruidosamente, os ataques kamikazes que vitimaram milhares de pessoas
e levaram à destruição de edifícios simbólicos, argumentaram que
eles foram suscitados pela "arrogância" da política externa estadunidense,
mencionando a falta de interesse dessa grande potência mundial em "resolver" os
problemas planetários do meio ambiente, das desigualdades, das epidemias
e da fome, das inúmeras guerras etc.
Alguns
desses posicionamentos são tão absurdos que nem vale
a pena refutá-los. Outros são equivocados pelo seu
exagero. Examinemos, em primeiro lugar, a idéia de que esta
guerra seria, em última instância, um "choque de
civilizações". O próprio autor dessa polêmica
tese segundo a qual os principais conflitos da nova ordem mundial
são culturais -- idéia que já dissecamos num
escrito anterior (VESENTINI, 2000) --, numa entrevista sobre o assunto,
afirmou que "Claramente, Osama Bin Laden deseja que seja
um choque de civilizações entre o Islã e o Ocidente. A principal
prioridade do nosso governo é tentar impedir que se transforme em
um" (HUNTINGTON, 2001). Ou seja, os acontecimentos não
são "fechados", não estão completamente
determinados a priori, mas são "abertos" ou
relativamente indeterminados no sentido de se redefinirem constantemente,
de adquirirem novas nuances dependendo do entrecruzamento das ações
de cada participante. Seria uma completa vitória de Bin Laden
e dos extremistas islâmicos se eles conseguissem transformar
esses atos terroristas numa "guerra santa" e, conseqüentemente,
a reação norte-americana numa "cruel retalização contra
o Islã". Mas essa versão, ao que tudo indica
-- principalmente pelo repúdio de inúmeras autoridades
políticas e religiosas do mundo islâmico, que afirmaram
que o terrorismo é algo inaceitável pelo Alcorão
--, não vai prevalecer. E toda a diplomacia dos EUA (depois
que as primeiras reações de Bush foram corrigidas pelos
seus assessores, que inclusive promoveram uma visita dele a uma mesquita
em Washington), e também de seus aliados (a começar
por Tony Blair), foi planejada com vistas a isolar os fundamentalistas
e estreitar os laços com as lideranças islâmicas
moderadas. Assim, a idéia que começa a vingar, e que
deverá prevalecer no final das contas, é a que esta é uma "luta
contra o terrorismo", promovida não apenas pelo Ocidente
mas pelos Estados em geral -- inclusive a maioria dos islâmicos
--, em especial por aqueles mais comprometidos ou mais ativos na
construção de uma ordem internacional menos instável
e na qual os negócios possam prosseguir e até se expandir.
Vejamos
agora determinadas opiniões simplistas, que foram bastante
divulgadas nos últimos dias, a respeito da "impossibilidade
de se vencer essa guerra no Afeganistão". Algumas delas
foram propagadas por pessoas que se intitulam "especialistas" em
estratégia ou em geopolítica. Conforme já demonstrou
de forma pertinente RADU (2001), são improcedentes e até míticos
os argumentos do tipo "o terreno impossibilita o uso de tecnologia
avançada" ou que "tal como nos exemplos britânico
(1838-42) e soviético (1979-89)", ou "tal como na
guerra do Vietnã", os norte-americanos "certamente
sairão derrotados desse país aguerrido e com uma natureza
hostil". Sobre isso cabe apenas lembrar uma lição
elementar sobre a guerra, que foi reproduzida tanto por Sun Tzu quanto
por Clausewitz: ela é antes de tudo um choque entre vontades,
entre sociedades diferenciadas, o que significa que a coesão
social normalmente é mais importante para a vitória
a longo prazo do que os combates no front. Não foram
os terrenos (as montanhas, num caso, e as florestas tropicais, no
outro), e nem mesmo um "maior conhecimento do terreno" pelos
nativos, o que determinou as derrotas da ex-União Soviética,
no Afeganistão, e dos Estados Unidos, no Vietnã. Foi
a coesão social desses países na luta contra o invasor
-- algo que não existe hoje no Afeganistão, onde, pelo
contrário, a imensa maioria da população gostaria
de se livrar do Taleban --, isto é, todo um extenso apoio
e suporte popular aos guerrilheiros. E também o auxílio
militar -- armamentos, treinamento, assessoria -- fornecido pela
outra superpotência da época (pelos soviéticos
aos vietnimitas e pelos norte-americanos aos guerrilheiros afegãos,
inclusive ao Taleban) foi fundamental no desfecho dessas duas guerras. É por
isso que a grande chance de vitória do El Quaeda ou
do Taleban nesta guerra não está no relevo montanhoso,
nem mesmo nos armamentos ou nas milhares de minas encravadas no solo
afegão, mas sim na propaganda via mídia. O principal front --
se é que podemos usar aqui este conceito militar -- desta
guerra, não se iludam, não está no território
afegão e sim na mídia internacional, em parte na opinião
pública das nações desenvolvidas internacional
e de outra parte na consciência das populações
islâmicas. Só um temor generalizado de revoltas populares
em países islâmicos, algo tão forte que pudesse
desestabilizar os regimes políticos atualmente vigentes nesses
Estados, especialmente naqueles produtores de petróleo ou
naquele que detêm armas nucleares (Paquistão), é que
poderia levar os Estados Unidos e seus aliados a transigir, a cessar
os bombardeios sobre o Afeganistão e inclusive realizar inúmeras
outras concessões (maiores pressões sobre Israel com
vistas a criar um Estado palestino independente e talvez até o
desmantelamento da base militar norte-americana no território
saudita). Provavelmente foi por esse motivo que nos últimos
dias Bin Laden concentrou os seus esforços na tentativa de
conceder várias entrevistas aos principais canais de televisão
do Oriente Médio e dos EUA e, segundo alguns jornais, ele
chegou a veicular a hipótese de se entregar desde que seja
para um país "neutro" e onde ele possa ter um julgamento "isento" (isto é,
podendo falar à vontade e assim prosseguir com o seu combate
via mídia). E também é por esse motivo que a
principal frente desta "guerra contra o terrorismo" por
parte dos Estados Unidos e de seus aliados não se encontra
no Afeganistão -- esta é apenas uma frente provisória
-- e sim em primeiro lugar na consciência das populações
muçulmanas, procurando tornar vitoriosa a idéia de
que "esta não é uma guerra contra a religião
ou a civilização islâmica", e, em segundo
lugar na opinião pública e nas organizações
internacionais, procurando legitimar e operacionalizar novas medidas
de proteção (das fronteiras, dos aeroportos e aviões,
dos edifícios símbolo etc.) e de vigilância (sobre
contas bancárias, sobre laboratórios que manipulam
bactérias ou virus, sobre determinadas instalações
químicas ou laboratórios de física nuclear,
sobre "atividades suspeitas" de alguns indivíduos
ou grupos etc.).
E,
por fim, existem aqueles, que por algum dos motivos apontados acima,
festejaram os atos terroristas e torcem para uma derrota norte-americana
e uma vitória do Taleban no Afeganistão (além
de exultarem com os protestos populares contra seus governos e contra
o Ocidente, promovidos por religiosos fundamentalistas, no Paquistão
e na Indonésia). Cabe apenas indagar se eles são movidos
pela razão ou por um ódio irracional e até mesmo
fascista. Pois por mais que o capitalismo globalizado e os Estados
Unidos tenham promovido ou sido coniventes com determinadas desigualdades
e injustiças, a alternativa oferecida por esses grupos extremistas é muito
pior. É uma completa destruição da frágil
democracia -- que, apesar de incompleta, deve ser preservada e inclusive
expandida (e não combatida) -- e um predomínio da intransigência,
de uma rígida hierarquia que não admite contestações
e de um caminho único que não aceita a pluralidade
ou sequer o diálogo com o(s) outros(s). Basta lembrar dos
massacres e das severas proibições promovidos pelo
Taleban -- fuzilamento de pessoas sem julgamento, interdição
de qualquer música ou arte que não seja islâmica,
fechamento de todos os cinemas, canais de televisão e jornais
independentes etc. --, da destruição das estátuas
gigantes de Buda (um rico patrimônio histórico-cultural
do Afeganistão) e da incapacidade desse regime em gerenciar
minimamente a economia e alimentar a população (a maior
parte dos alimentos que a população afegã consumiu
nestes últimos anos veio da ajuda humanitária promoviada
pelas organizações internacionais). Basta lembrar ainda
do ódio intenso que todos esses militantes fudamentalistas
-- e não apenas o Taleban ou o El Quaeda -- alimentam
contra as conquistas (mesmo que ainda incompletas) feministas no
Ocidente, contra alguns direitos mínimos concedidos aos homossexuais,
contra a liberdade de expressão, contra a idéia de
um sistema judiciário independente, contra as eleições
e a rotatividade dos partidos no poder, enfim contra toda uma filosofia
de direitos dos homens e dos cidadãos, que é a base
da democracia. Esse tipo de posicionamento -- a identificação
com os terroristas porque eles atacaram o "centro do imperialismo" --
lembra muito aquela imagem, sugerida por Hannah Arendt num escrito
sobre a "crise da educação", a de uma criança
serrando o galho da árvore sobre o qual está sentada.
Ele se assemelha ainda ao equívoco cometido por alguns na
Alemanha da década de 1920 e inícios dos anos 30, que
detestavam (com alguma razão) a República de Weimar
e manifestavam uma certa complacência ou até alegria
frente à baderna e aos atos violentos promovidos pelo partido
nacional-socialista de Hitler. O resultado é conhecido por
todos. Convem aqui recordar a lição de que nem sempre
o inimigo do meu adversário é meu amigo. Muitas vezes
ele é pior ainda que o adversário, em especial quando
não respeita as regras do jogo democrático, quando
semeia o pânico, o terror e a intolerância, quando nos
considera a todos infiéis que têm que ser convertidos
pela força.
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