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O texto aqui apresentado foi escrito no âmbito do projeto de pesquisa “Mídia e interculturalidade: estudo das estratégias de midiatização das migrações contemporâneas nos contextos brasileiro e espanhol e suas repercussões na construção midiática da União Européia e do Mercosul”. Desenvolvido entre março de 2004 e dezembro de 2011, o estudo foi coordenado pelos professores Denise Cogo (Unisinos) e Nicolás Lorite (Universidad Autónoma de Barcelona), contando ainda com a participação de diversos professores, alunos pós-graduandos e investigadores das duas instituições. O trabalho de campo dedicou-se à realização de 140 entrevistas com migrantes latino-americanos e europeus hoje residentes nas cidades de Barcelona (Espanha) e na região da grande Porto Alegre (Brasil). O foco temático central dizia respeito à percepção, por parte dos migrantes, de inter-relações entre processos migratórios e produções (e/ou representações) midiáticas. O texto que segue traz à público parte dos dados e das reflexões então produzidas.
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Ao longo de nosso processo de investigação, esperávamos que os dados empíricos pudessem nos proporcionar a maior diversidade possível de “perfis” migratórios e de percepções sobre a experiência intercultural em seu impacto sobre a identidade dos entrevistados em diversos níveis. Assim, coletamos um conjunto muito valioso de “histórias pessoais” e situações interculturais narradas. Basicamente, o objetivo do presente artigo é apresentar parte deste material, procurando então esclarecer ou encontrar um perfil ou os principais perfis dos migrantes com os quais trabalhamos. A intenção é a de que possamos dar aqui um breve retrato, mostrar o modo como os atores sociais que entrevistamos vivem o impacto subjetivo da experiência migratória.
Entretanto, trata-se de tentar apreender também o modo como submetem este impacto ou esta vivência subjetiva a certas grades sociais. Dentre elas, encontram-se desde as representações e os imaginários sociais construídos, no Brasil e na Espanha, sobre o migrante, sobre os diversos tipos e os diversos perfis de migrantes – a dimensão do que poderíamos chamar aqui de uma “subjetividade coletiva” – até enquadramentos sociológicos mais objetivos, tal como a inserção nos mercados formais e na ordem legal.
Em outras palavras, pretendemos ver como o migrante, lidando com demandas objetivas, tais como os vistos, as ofertas de emprego, a escolaridade, as condições de residência, e subjetivas, tais como a solidão e a saudade, anuncia-se e define-se enquanto tal. Quais destas dimensões (ou quais dos múltiplos temas que dentro delas podem se colocar) pesa (ou pesam) mais no momento em que se auto-definem e refletem sobre sua condição?
Nossa expectativa era a de que a experiência subjetiva pudesse ser acompanhada justamente nos movimentos e no processo (vivencial, tentativo...) que a tornam experiência social – a experiência subjetiva no seu processo de conversão em experiência social. Diante de tais intenções e tais desafios teóricos, autores como Néstor Garcia Canclini e Stuart Hall, ao falarem sobre identidades culturais, como Erving Goffmann, ao falar sobre o self e as representações do eu na vida cotidiana, como Anthony Giddens, ao trabalhar as noções de estruturação e de reflexividade social, foram importantes e forneceram boas balizas conceituais.
Os referenciais teóricos citados, bem como os objetivos gerais do artigo, indicam que, neste momento, nossas maiores preocupações não são midiáticas num sentido muito estrito. Antes, temos intenções de obtenção e desenho de um quadro sociocultural – um quadro sociológico no qual se dão passagens pessoais e ocorrências subjetivas. Logicamente, o midiático continua presente em nosso horizonte de trabalho. Entretanto, irá aparecer aqui como incidência, como presença indireta e um tanto difusa nos relatos. Como sabemos, a apreensão de processos midiáticos, principalmente de processos midiáticos rebatidos e misturados nas experiências societais – assim qualificados, processos midiáticos muito mais complexos –, não se daria num só golpe, nem de uma só vez. Fazer um quadro sociocultural inicial – onde o midiático estrito é um pouco coadjuvante – pareceu-nos então algo não só plenamente justificado como também muito necessário e prudente.
Embora os referenciais teórico-conceituais se façam (e estejam, de fato) presentes, não podemos esquecer que o principal conceito sobre “migração” (e outros conceitos que decorrem dele, como “migrante”, “fluxo migratório”, etc) será aquele dado pelas próprias falas reunidas. Mais do que uma definição abstrata e generalizante sobre o fenômeno, importa perseguir aqui um processo social muito concreto e espontâneo de conceituação (ou de “auto-definição”). Sendo assim, teríamos algo como um grounded concept (um conceito fundado; um “conceito vivido”, digamos). A pergunta, enfim, é a seguinte: como os atores sociais, a partir daquilo que vivem, conceituam e definem a própria experiência migratória?
Identidade, pertencimento e migração
Um de nossos primeiros desafios foi justamente o de pensar os dados empíricos para além da mera afirmação dos clichês identitários. Os estereótipos culturais – talvez não pudesse ser mesmo diferente – estavam permanentemente presentes. Entretanto, aceitando tal fato, como ler por entre as concepções de senso comum de que o Brasil é um país acolhedor, de que os brasileiros são alegres, de que os espanhóis sabem viver a vida, de que os europeus do norte são frios, por exemplo? O que é dito junto com tais “visões de mundo” ou a despeito delas? Em algum momento elas são negadas, sem que o próprio entrevistado perceba? Trata-se aqui de tentar ver quais estereótipos aparecem, como aparecem e, se ocorrer, como são contraditados.
Neste sentido, o material empírico obtido possibilitou a organização de certas tipologias para pensarmos as questões identitárias e todos os relatos apresentados sobre o sentimento de pertencimento. Num dos extremos, teríamos um perfil mais essencialista – aqui, talvez se recoloque, muito afirmativamente, a questão dos estereótipos culturais (referida acima) –; noutro extremo, colocam-se aquelas falas – e elas não são poucas – que afirmam uma identidade plural, aberta, fragmentada, multicultural, ou como quisermos chamá-la. Alguns entrevistados dizem: “Me sinto assim..., mas, por outro lado, me sinto assim também...”; “sou de tal lugar, mas me sinto também muito daqui”; “sou multicultural”, etc etc. Tratar-se-ia então de tentar apreender, via depoimentos, a composição e as nuances dessa graduação. Assim, valeria evidenciar tanto os dois pólos (essencialistas x multiculturais) quanto os lugares intermediários, com suas combinações e seus relativismos pontuais. Não se tratou, claro, de nominar, catalogar ou enquadrar sujeitos específicos, mas de, a partir de suas falas concretas, apreender “tipos abstratos ideais”. Certamente, em cada tipo ou em cada posição desse gradiente será possível observar aspectos definidores, aspectos deixados para trás, trocas e substituições feitas, acréscimos, etc. Como os elementos simbólicos, culturais, materiais e/ou econômicos mobilizados para definir o pertencimento vão sendo apresentados, vão permanecendo ou sendo trocados (e por quais outros)? Parece importante então que possamos ver as diferentes formas pelas quais se expressa o sistema simbólico da identidade. Até porque, eventualmente, tentar entender estas variações e estas diferenças pode revelar certas incidências midiáticas. Afinal, nossa hipótese era de que, na tensão entre permanente reconstrução x permanente afirmação identitária, atravessam-se também materiais e fluxos propriamente midiáticos.
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Quando se analisa a totalidade das respostas dos migrantes à questão “você se identifica com o seu país de origem?”, é possível perceber a existência de tipos de identificação diferenciados, considerando a natureza unitária ou plural da afirmação identitária, nos dois contextos.
Há um grupo significativo de migrantes que afirmam uma identificação relacionada a uma nação (42% do total), que pode ser a de nascimento ou de destino atual; há também um grupo significativo caracterizado por uma identificação composta (46% dos migrantes), agregando à nacionalidade relativa ao país de origem outras formas de identificação, que podem ser referentes ao país ou à região de destino atual (Catalunha, Barcelona ou Porto Alegre); há ainda um grupo menor de migrantes que afirmam uma identificação multicultural (12% do total), configurada por referentes múltiplos, diversos e plurais.
Os dados apontam para a questão de que a experiência da migração, entre os investigados, em geral, não significa apagamento da identificação com a nação de origem (84% dos migrantes afirmam a nacionalidade de origem, agregando-a, eventualmente, a outras formas de identificação, sem se contabilizar aqui aqueles que afirmam uma identificação multicultural). Mas também se pode ver que, num número significativo de casos, esta identificação aparece relativizada na reivindicação de identificações compostas (que somam 46%), relativas aos contextos vivenciados pelos migrantes em suas trajetórias de vida, ou ainda, disseminada pela afirmação de uma identidade plural, aberta ou multicultural.
A identificação com a nação de origem é explicada fundamentalmente em base cultural, em ambos os contextos. Ou seja: são os referentes de natureza cultural que assumem predominância na definição da pertença nacional. Isto denota a gestação de uma definição identitária nacional menos ideológica (construto político), menos mítica (construto histórico) e mais propriamente alicerçada em elementos de ordem cultural ligados a práticas cotidianas.
Estas qualificações são melhor explicitadas considerando os três tipos básicos de identificação, na seqüência.
Identificação relativa a uma nação
A afirmação de identificação relativa a uma nação é geralmente relacionada ao país de origem. É maioria entre os migrantes que vivem em Barcelona (51% do total), tendo menor expressão no contexto de Porto Alegre (31%). Está presente entre migrantes provenientes da América Latina e da Europa, entre migrantes de diferentes nacionalidades, idades e sexos. Os dados sinalizam que este tipo de identificação ocorre mais entre os migrantes com tempo não muito longo de permanência no contexto de migração atual4. São os referentes de natureza cultural que assumem predominância na definição da pertença nacional entre os migrantes agrupados neste modo de identificação, expressados em falas que fazem referências gerais às “raízes”, aos “costumes”, à “cultura”. Em alguns casos, vale dizer, tais relatos fazem especificações maiores, como veremos. O referente de identificação mais citado é a culinária, que aparece nas falas dos migrantes provenientes da Europa e América Latina, vivendo nos dois contextos, embora tenha maior presença nas falas daqueles vindos da América Latina, residentes em Barcelona.
Os hábitos gastronômicos são tomados, em muitas das falas que ouvimos, tanto num sentido muito estrito (comidas e bebidas típicas) quanto como ritualidade cultural mais ampla, lembradas e destacadas também pelos preparativos e por todos os demais sentidos que cercam as reuniões comensais. Há migrantes que detalham pratos e bebidas considerados típicos dos países e lugares de origem, ritualidades da alimentação. Alguns mencionam a conservação de suas práticas no núcleo familiar e/ou em ocasiões de encontros e celebrações, muitas vezes realizadas com outros migrantes conterrâneos. Outros apontam a culinária típica como elemento ativador (e também como estratégia de compensação, como fator atenuante) da saudade. Alguns relatam as táticas utilizadas para conseguir os produtos alimentares da terra natal, como a procura por lugares específicos onde determinados produtos são comercializados, assim como o costume de trazê-los quando o país de origem é visitado (seja pelos próprios migrantes, seja por amigos ou conhecidos). Em país estrangeiro, é possível perceber que o resgate da culinária aciona e mantém algum tipo de vínculo simbólico-memorialístico com a terra natal. As falas a seguir são muito ilustrativas.
Yo, las comidas típicas lo hago aún aquí. La comida de aquí... no es que no me apetezca. (...) Si, en Mercado Latino, que es un local aquí que traen cosas nuestras... Traen nuestras yerba mate, tomamos tereré (Casimiro, Barcelona, 26 anos, nascido no Paraguai).
El gusto sigue siendo muy argentino, sigo, a pesar de haber pasado 18 años, recordando el gusto del melocotón, de las fresas (Hilario, Barcelona, 55 anos, nascido na Argentina).
Pues ahora estoy veniendo de un almuerzo y hemos comido comida peruana y se toman cosas peruanas (Sebastián, Barcelona, 28 anos, nascido no Peru).
Los rasgos que la gente me dice que me hacen italiana son la gestualidad, la comida (Carla, Barcelona, 32 anos, nascida na Itália).
Curiosamente, a própria culinária se presta também, ou é submetida, a processos de fusão ou combinação de pratos típicos do país de origem e pratos típicos do país para o qual se migra. A tensão entre apropriação e manutenção de hábitos culturais manifesta-se também à mesa, seja na experiência presente da migração, seja no recontar histórico dos hábitos culturais, permanentemente lembrados quando se trata de afirmar traços identitários. Os depoimentos a seguir ilustram a presença deste referente:
Trato de conservar ciertas raíces, como es por ejemplo en el área de la comida. (...) Yo combino un plato de aquí con mis platos. Porque unas amigas me dicen, yo también era así cuando yo llegué, yo cocinaba las cosas de allá pero ya después no. Yo no, yo hago, preparo cosas, guardo en el congelador y ya después saco... (Jenni, Barcelona, 42 anos, nascida no Equador).
Assim, sendo um país europeu, nós temos uma culinária que foi bastante premiada com coisas que vieram de fora, por exemplo, nós temos uma cozinha que utiliza muito mais especiarias do que qualquer outro país da Europa, que utiliza ervas e outros tipos de coisas que não são da Europa, como, por exemplo, o coentro. Porque o coentro é uma erva da Ásia, do sudoeste asiático. E é daquelas coisas que, por exemplo, no sul de Portugal há coentro em tudo quanto é lado (Julio, Barcelona, 40 anos, nascido em Portugal).
A música e a dança são outros referentes importantes de identificação, que aparecem particularmente apontados pelos migrantes provenientes da América Latina, de distintas nacionalidades. Indica-se assim a importância deste referente cultural no contexto latino-americano. Dentre os migrantes provenientes do contexto europeu, apenas uma migrante polonesa cita este aspecto. Já entre os provenientes da América Latina, a música é mencionada em oito ocasiões, e a dança em duas entrevistas. Na fala de alguns destes migrantes aparecem detalhes, como o hábito de trazer músicas do país, o sentido de rememoração de lugares e práticas queridos do país de origem, os modos de escuta, como a associação com rituais alimentares no âmbito doméstico, o uso do computador para escutar e a descoberta de lugares onde se pode ouvir música típica dos países de origem no contexto de migração atual. Vale destacar também o caso de um migrante que trabalha com a música brasileira em Barcelona. Os depoimentos seguintes ilustram a presença destes referentes de identificação com a nação de origem.
Me he traído también mucha música. Y bueno, es como que uno escucha y no sólo porque te hace acordar al lugar, sino también a momentos que estabas con personas que querías, o donde estabas haciendo cosas que te gustaban, y bueno es como que escuchas esa música y te remonta a ese tiempo (Jina, Barcelona, 25 anos, nascida na Argentina).
La música peruana me encanta! Yo iba a las (...) peñas criollas, donde hay muchos cantantes de música criolla, que es música de la costa peruana e donde todo el mundo se sabe las canciones, entonces es un éxtasis, se toma cerveza con los amigos, una persona ahí adelante cantando. (...) Y bueno, aquí igual escucho la música peruana, en el ordenador. (...) El desayuno del domingo, y se escucha... se come a la una de la tarde escuchando música peruana (Manuel, Barcelona, 28 anos, nascido no Peru).
A língua ou particularidades lingüísticas são elementos presentes nas falas de alguns dos entrevistados para marcar a pertença nacional (seis migrantes, quatro de Barcelona e dois de Porto Alegre). Há referências não apenas a um idioma nacional, mas a particularidades lingüísticas regionais ou étnicas (o catalão, o guarani e um dialeto italiano), apontando clivagens internas aos países de origem em termos de linguagens que continuam vigentes como elementos de identificação. É o que ilustram os depoimentos:
O guarani eu continuo falando. E o espanhol, né? Não tem como. (...) Sou alfabetizada em guarani. Falo, leio e escrevo em guarani (Lina, Porto Alegre, 30 anos, nascida no Paraguai).
Una coisa, não seria tanto en Espanha, seria en Cataluña. (...) En Cataluña, la língua, muito... En espanhol no siento tanto. (...) Catalão si, para mi é algo que identifica e que é muito de minha raiz. Porque eu nasci e aprendi catalão desde que eu era pequena. É a minha língua materna, sí (Juana, Porto Alegre, 26 anos, nascida na Espanha).
Outro elemento que ancora sentimentos de identificação com as nações de origem é referente às relações afetivas, familiares, de amizade e de solidariedade. Sob este aspecto aparecem referências àqueles que o migrante identifica como “minha gente”: “Eu gosto mais da minha terra, da minha gente. Eu não gosto muito daqui”, diz uma das entrevistadas (Nuria, Porto Alegre, 35 anos, nascida no Uruguai). Refere-se também aos amigos feitos no país de nascimento: “Y esto me hace brasileña, mi infancia, mi educación, mis amigos” (Norma, Barcelona, 29 anos, nascida no Brasil); à família, que permanece no país de origem: “Sí, yo soy polaca. Soy polaca cien por ciento y extraño mucho mi país, extraño mucho mi família” (Suzana, Barcelona, 30 anos, nascida na Polônia); à importância dos laços familiares:
“Hombre, la familia, ese sentimiento de unión que hay en nuestra familia. Yo pienso que no solamente en Perú, sino en latinoamerica. Es totalmente distinto aquí. O sea... principalmente, te diría que lo familiar, o sea lo emocional y familiar” (Adriano, Barcelona, 32 anos, nascido no Peru).
No contexto do país em que estão vivendo, os entrevistados referem-se também a certos modos de reconstrução de relacionamentos com migrantes conterrâneos, em grupos ou associações, formais ou informais, que alimentam os sentimentos de pertença.
Os costumes nossos, continuamos cultivando siempre. Tanto seja no núcleo familiar como procurando siempre estar em contato con otros uruguaios, né? (...) Tanto que seguido entramos em contato com a Casa de Amizade Brasileiro-Uruguaio, que era una organización que funcionava aqui em Porto Alegre y através dela foi que então entramos em contato con la colônia uruguaia mesmo, não é? (Margarita, Porto Alegre, 31 anos, nascida no Uruguai).
Reunidos aquí, porque hay muchos paraguayos aquí, entonces uno empieza a hablar, comenta como es allá... y ... no perdí mucho vamos a decir pero ... cómo se dice... saudades por decir (no sé como se dice en español) mas, pero.. uno siente falta de su país, de sus padres y demás cosas (Fina, Porto Alegre, 36 anos, nascida no Paraguai).
Estes referentes de identificação estão mais presentes entre os migrantes provenientes da América Latina, o que pode indicar a importância que assumem as relações afetivas nas culturas latino-americanas. Os meios de comunicação desempenham um papel importante na manutenção e reconstrução destes laços, como relata Manuel (Barcelona, 28 anos, nascido no Peru), que criou um site com o objetivo de “conocer a los otros peruanos, ver a las otras personas cómo actúan” 5. Atributos, qualificações e estereótipos relativos ao modo de ser também são apontados como elementos que caracterizam a pertença nacional nos depoimentos de alguns migrantes. Seguem alguns exemplos deste tipo de referenciação. Os migrantes brasileiros que vivem em Barcelona destacam a alegria, a ingenuidade, a honestidade, a pluralidade, a capacidade de adaptação como características do brasileiro, assim como a orientação para o presente, ao invés do futuro, tida como característica européia, como se pode ver nos seguintes depoimentos:
Me siento totalmente identificada con Brasil (...) y yo creo que esto es muy brasileño, la ingenuidad, la honestidad, de decir lo que piensas y hacer lo que crees, y también lo de no pensar tanto en el futuro (...). Porqué en Brasil, como tú no puedes planear nada, vives muy bien el presente, que es lo que importa (Norma, Barcelona, 29 anos, nascida no Brasil).
Acho que a pluralidade brasileira é uma coisa que eu carrego um pouco comigo assim e a espontaneidade também. (...) O brasileiro se adapta muito fácil à situação diferente, é muito versátil (...) e a alegria brasileira vem um pouco disso, dessa versatilidade. Sabe, eles até confundem e acham que a gente é muito alegre e tal, e não é, é que a gente vai se adaptando (Damián, Barcelona, 32 anos, nascido no Brasil).
Os peruanos são qualificados por uma migrante deste país como carinhosos e amáveis: “la gente es muy cariñosa, muy amable, tu preguntas algo y te explican todo, si pueden te llevan, vamos, al sitio” (Suzana, Barcelona, 28 anos, nascida no Peru). Outras atribuições que aparecem no depoimento de Mara (Porto Alegre, 34 anos, nascida no Peru) são o trabalho, o espírito de luta e a coragem peruana: “mais é o espírito de luta, porque o peruano é muito trabalhador. Acho que o peruano em qualquer lugar faz alguma coisa para sair em frente. (...) É muito corajoso”.
Migrantes argentinos referem-se ao modo de processar e raciocinar, a preocupação com o futuro e o caráter nostálgico refletido no tango como elementos que caracterizariam o argentino.
En la forma de procesar, no sé, todo tipo de situaciones, o sea de reflexionar, de pensar, creo que en cada país, dicen no, idiosincrasia, de ser y de ver las cosas. Sigo viendo y siendo argentina, analizando detalladamente todo y dándole la vuelta (Carmen, Barcelona, 27 anos, nascida na Argentina).
La vida del argentino es como un tango. Sí. Es nostálgico, es muy profundo y lo del tango es que sabemos vivir, pero también sabemos sufrir. Con los políticos que tuvo y todo eso… (Fabián, Barcelona, 33 anos, nascido na Argentina).
Ainda neste sentido, uma migrante alemã que vive em Barcelona destaca o caráter nórdico, mais reservado, que caracterizaria o alemão, em contraste com o jeito latino: “veo la calidad de esa manera más alemana, más nórdica, de que necesitamos un tiempo para abrirnos, para relacionarnos, pero cuando nos gusta una persona, somos amigos muy fieles...” (Jisela, Barcelona, 35 anos, nascida na Alemanha).
Na visão de uma migrante, são características do polonês o conservadorismo e o romantismo: “Soy polaca cien por ciento y extraño mucho mi país, (...) la gente en Polonia es un poco mas conservantista. (...) El romantismo polaco, soy muy romántica (Suzana, Barcelona, 30 anos, nascida na Polônia). Já uma francesa destaca o gosto pela política como elemento distintivo do francês: “Las ganas de revolución, o el gusto para hablar o discutir o debatir de política, por ejemplo, esto es muy francés y aquí no hay este sentido de política” (Amelí, Barcelona, 27 anos, nascida na França).
Identificações regionais e locais também são afirmadas por migrantes da Itália, da França, do Equador e da Espanha, apontando para a força das clivagens internas às nações que ancoram sentimentos de pertença de base mais regional/local:
Mis padres son del sur, de Calabria, yo vivi durante cinco años... decidi vivir en Napoles asi que, asi que no solo me relaciono con Itália, sino que intento relacionarme con el sur de Itália. (Carla, Espanha, 32 anos, nascida na Itália).
Naci en una isla y entonces siempre quien nace y vive en una isla no tiene mucho que ver con la cultura del continente, esto es normal y tambien que en Itália está unida desde muy poquito tiempo y entonces desde el punto de vista del idioma y del punto de vista cultural hay muchas diferencias, entre norte y sur (Emma, Barcelona, 45 anos, nascida na Itália).
Como bretona también... que Bretaña es una parte un poco distinta, es una identidad muy fuerte y más me siento identificada como bretona (Amelí, Barcelona, 27 anos, nascida na França).
Yo soy del sitio en el que nascí, yo soy de Guayaquil (Yara, Barcelona, 39 anos, nascida no Equador).
Não seria tanto en Espanha, seria en Cataluña. É porque tu sabes que... Cataluña tens así toda una historia... (Juana, Porto Alegre, 26 anos, nascida na Espanha).
A cultura relativa ao futebol também aparece como elemento que ancora o sentimento de pertença, no caso de um migrante argentino: “El fútbol... Como se vive ¿no?, sobre todo cómo se vive el fútbol en Argentina. (...) Boca. El gran Boca Juniors” (Hilário, Barcelona, 55 anos, nascido na Argentina).
Há ainda referências ao contexto de migração atual como elemento que produz alteridade, seja pela identificação nas relações informais como diferentes, como migrantes, por situações de discriminação vivenciadas ou ainda pela situação legal e política. O depoimento de uma migrante alemã que vive em Barcelona demonstra este tipo de referência: “Y una vez estaba en la calle (...) y venía un señor mayor al lado mío y yo no he hecho nada... y decía… ¡eh que haces aquí con tu bici... eh Alemania eh fascista!!! ¡Sal del país, vuelve a Alemania!” (Jisela, Barcelona, 35 anos, nascida na Alemanha).
No contexto brasileiro, há a presença de migrantes que passam a afirmar uma identificação com o Brasil, advindos de Portugal, da Argentina e do Uruguai. Uma característica que une estes migrantes é o longo tempo de moradia no Brasil: a média de tempo é de 30 anos, sendo o menor tempo de 16 anos e o maior de 50 anos. Os depoimentos apontam para fatores como o tempo de permanência no Brasil, a acolhida, a ruptura com o cotidiano do país de origem, a presença da família em Porto Alegre e a decisão de viver a nova condição:
Eu me considero brasileiro, sou louco pelo Brasil. Sempre fui bem tratado (Alan, Porto Alegre, 83 anos, nascido em Portugal).
Eu não tenho conhecimento do dia a dia de lá, eu tenho poucas recordações. Eu saí de lá quando tinha 16 anos, ainda era uma criança, não sabia quanto custava uma semana de alimentação, não tinha essa base de vida lá (Alberto, Porto Alegre, 41 anos, nascido em Portugal).
No. A diferencia, con la última, com o exílio anterior, porque meus olhos estavam mirando para a Argentina. Quando eu morei os outros siete años, minha mirada estava dirigida ao sul. (...) Aqui existe a receptividade nas pessoas. No na lei. As pessoas, sim. As pessoas... Eu tenho, pelo menos eu tive, sorte. Encontrei pessoas muito receptivas. (Bárbara, Porto Alegre, 54 anos, nascida na Argentina).
Identificação composta
Um dado significativo em relação a este modo de identificação é que aparece como maioria no contexto brasileiro (60%), mas também tem relativa significação no contexto espanhol, particularmente por conta da identificação com Barcelona. Analisando os subtipos deste grande grupo, vemos que a identificação com a nação de origem e a de destino atual (ou região ou cidade) aparece nos dois contextos investigados, embora seja mais pronunciada no contexto brasileiro, com 49%, contra 25% no contexto espanhol. Os migrantes da América Latina são os que mais expressam este tipo de identificação.
No contexto brasileiro, a maioria das identificações deste grupo se dá com o Brasil. Entre os migrantes provenientes da América Latina, a identificação brasileira também é a mais expressiva, mas há uma parcela significativa (33% do total) que reivindica uma identificação gaúcha6 e não com o país. Um dos fatores que parecem estar relacionados a este tipo de identificação é o longo tempo de permanência no Brasil, em média de 25 anos (o menor tempo neste grupo é de 10 anos). Ao falarem sobre a identificação com o país de origem e com o Brasil, muitos migrantes expressam ter adotado elementos da cultura brasileira, adquiridos no decorrer do tempo de permanência no Brasil, em geral longo. Alguns também falam da percepção de que sua cultura modificou-se, percepção particularmente aguçada nos momentos em que visitam o país de origem. Tal impressão seria também compartilhada (e então reforçada) por outros migrantes conterrâneos. Outros entrevistados, provenientes de países da América Latina, relatam terem vivido situações difíceis nos países de origem, particularmente relacionados aos períodos de ditadura, tendo encontrado no Brasil maior liberdade e melhores condições de vida, comparadas àquelas vigentes e possíveis no país natal. Um migrante italiano diz ter encontrado mais liberdade e maior democracia no Brasil, em contraste com o que chama de conservadorismo de seu país e da Europa, de modo geral. Também são muito citados como elementos que configuram a identificação brasileira a reconstrução de vínculos afetivos e familiares no novo contexto. A maioria também expressa manter elementos e práticas culturais relacionadas ao seu país de origem, qualificados por alguns como suas raízes: a língua, o sotaque, a comida, as danças, costumes relacionados à família e sua organização e tradições cívicas.
É curioso... Às vezes penso em português, às vezes penso em espanhol... (...) E eu já tô com hábitos de brasileiros, né? Eu quando fui pro Uruguai pela última vez... As pessoas que eu procurei me diziam “tchê, mas como tu tá abrasileirado”, né? Eu não pude evitarlo, né? (Jaime, Porto Alegre, 55 anos, nascido no Uruguai).
Yo pase una etapa muy difícil en Argentina. Yo vivi en la etapa de la represión. Yo soy de la etapa de la dictadura. Yo pasé pela guerra. Uma casi guerra que hubo com Chile. Y pasé por la guerra de Malvinas (Julia, Porto Alegre, 48 anos, nascida na Argentina).
Todo o sacrifício que eu fiz valeu a pena e adotei o Brasil como se tivesse nascido de novo. Brasil é tudo que eu tenho, né. Brasil é a minha casa, Brasil foi a garantia de meus recursos econômicos, o Brasil que me deu oportunidade de estudar, são as famílias brasileiras que valorizam o meu trabalho... (...) Tenho duas lindas filhas, uma bela esposa... (Raúl, Porto Alegre, 57 anos, nascido na Bolívia).
La adaptación al país en el qual él termina viviendo es cada dia maior. Las relaciones interpersonales que él vá adquiriendo, o se ván estructurando através del tiempo que permanece en esse segundo país, él cria relaciones que practicamante lo hacen no olvidar... (...) las relaciones que mantenía com el país de origem, cada vez son más tenues (Leopoldo, Porto Alegre, 60 anos, nascido no Chile).
Aqui nós temos mais liberdade, somos mais democráticos, somos mais para frente. Não vai pensar que na Itália o povo é mais avançado do que o brasileiro porque não é. Eles são muito conservadores, o que o avô, bisavô dizia mantém até hoje. (...) A União Européia é muito conservadora, ela representa mais o passado, o povo que era 50 anos atrás é a mesma coisa. A América do Sul não, o Brasil não, é um povo diferente, é muito criativo (Roberto, Porto Alegre, 73 anos, nascido na Itália).
Nos relatos sobre a identificação com a nação de origem e com o Rio Grande do Sul, os migrantes destacam, sobretudo, a similaridade cultural percebida em relação à cultura gaúcha. Este tipo de identificação aparece, quase na totalidade, entre os migrantes da América Latina. Mas há também um espanhol que percebe maior similaridade entre a cultura gaúcha e a cultura do seu país de origem. Os migrantes da América Latina são, na grande maioria, provenientes do Uruguai e da Argentina7, o que aponta para a vigência de matrizes culturais históricas comuns à região e trânsitos culturais, facilitados também pela proximidade geográfica. São citadas semelhanças em relação à “comida” (particularmente o churrasco), à bebida (o mate), à figura do gaúcho, à música, ao uso da lã de ovelha na fabricação de roupas, etc. Um migrante (uruguaio) também menciona referentes históricos que aproximam os dois países. Aqui no Rio Grande do Sul eu me identifiquei muito, porque tem muitas coisas aqui que tem lá em Buenos Aires. Antigamente isso fazia parte de um Império Espanhol, então tem muitas coisas que tem aqui que tem lá (...) me adaptei, me realizei porque eu gosto do frio (...), gosto de comida forte, por exemplo, churrasco, massa, molho com carne (Javier, Porto Alegre, 45 anos, nascido na Argentina).
Me sinto em casa. Sabe una coisa que me encantou no Rio Grande do Sul? Primeiramente, no primeiro tempo que estava aqui, sentia a cultura de um povo superior ao do Rio de Janeiro. (...) Aqui tu sabia que o cara tinha pelo menos o primário. Depois, comecei a gostar do folclore de vocês. O gaúcho, a prenda, a música folclore, todas as cosas parecidas com a Argentina e o Uruguai (Antonio, Porto Alegre, 74 anos, nascido na Argentina).
O chimarrão é uma coisa, churrasco és outra, a música és outra. O idioma é diferente, mas a música gaudéria de vocês tem muito a ver com a música nossa, com a música gaudéria nossa, o chimarrão. (...) A vestimenta da ovelha também, acho que se tem diferenças são mínimas, né? (Cosme, Porto Alegre, 38 anos, nascido no Uruguai).
Estou há muitos anos aqui, eu não posso me identificar com o baiano tanto quanto o gaúcho, logicamente. Até porque vocês são mais próximos da nossa cultura (Marta, Porto Alegre, 59 anos, nascida na Espanha).
Estes migrantes também expressam manter elementos da cultura do seu país de origem, como a feitura do chimarrão com erva típica (uruguaia, por exemplo), a comida e a música ou readaptá-los, misturando elementos das duas culturas, como ilustra o seguinte depoimento:
O churrasco é metade adaptação, né? Metade estilo gaúcho, metade uruguaio. Porque aqui é com espetos e com carvão. Eu, lá, nós usamos lenha e uma grelha. Eu uso a grelha com carvão. (...) Eu continuo, por exemplo, tomando chimarrão com erva uruguaia (José, Porto Alegre, 45 anos, nascido no Uruguai).
As falas destes migrantes também sinalizam especificidades e distinções relacionadas à acolhida no Brasil: uruguaios expressam a percepção de serem melhor acolhidos que os argentinos; um argentino fala das discriminações sofridas, em particular relacionadas ao futebol; um espanhol percebe que os brasileiros acolhem bem os migrantes, particularmente os europeus.
A gente aqui, que não te conhece diz: Argentino ou Uruguaio? Porque sempre primeiro o argentino... Aí digo “No, uruguaio”... “Ah, menos mal...”. (...) Eu acho que o uruguaio tem outro jeito de ser que... agrada muito mais... A gente é muito mais tranqüilo... (Mauro, Porto Alegre, 27 anos, nascido no Uruguai).
Principalmente agora, quando chega el mundial de futebol. Aí eu sou o mais cobrado por aqui, porque todo mundo sabe que eu sou argentino, entón vem uma cobrança maior do público, até do público que no conheço, mas também pelos meus amigos também, né? (Arturo, Porto Alegre, 48 anos, nascido na Argentina).
Há uma coisa que o Brasil acha que o estrangeiro é melhor, não, não é melhor, somos iguais. (...) Com os latinos não sei, daí acho que é diferente. Eu sei porque tem professores que não conseguiram ficar aqui e tentaram, vinham como estudante, claro, para latino é uma estória, para Espanha é outra (Marta, Porto Alegre, 59 anos, nascida na Espanha).
No contexto espanhol, a maioria das identificações deste grupo se dá, além do país de origem, com a cidade de Barcelona (53% dos migrantes aqui incluídos). A identificação com Barcelona aparece entre todos os migrantes provenientes do contexto espanhol, ou seja, eles não se identificam com a Espanha, mas com a cidade de Barcelona. Entre os migrantes provenientes da América Latina, embora esta seja a forma mais expressiva deste tipo de identificação, aparecem também a identificação com a Catalunha e com a Espanha.
Começa a sugerir-se também uma imagem muito marcada da cidade de Barcelona. Menções à capital da Catalunha são muito mais freqüentes e importantes, do ponto de vista identitário e/ou de integração, do que menções à capital gaúcha. Teríamos em Barcelona uma espécie de Babel, uma capital essencialmente multicultural, dispondo cruzamentos e fazendo pontes entre matrizes culturais latino-americanas e européias. Não por acaso, diz-se que a cidade é um tipo de “porta de entrada” para a Europa. O próprio trânsito lingüístico normalizado, tornado cotidiano (entre o catalão e o castellano) amenizaria outros eventuais estranhamentos ou dificuldades idiomáticas porventura encontrados.
Ao explicar a identificação com Barcelona, os migrantes apontam similaridades culturais com seu país de origem, expressam ter aprendido a gostar da cidade, das pessoas, ter incorporado costumes e sentir maior tolerância em relação a outras cidades em que viveram, do seu próprio país ou da Espanha mesmo.
Yo me siento colombiana pero muy identificada con muchas cosas, sobretodo de Barcelona. Yo no sé si en vez de haber llegado a Barcelona, hubiera llegado a Galicia... Estoy segura que me hubiera integrado (Gisela, Barcelona, 51 anos, nascida na Colômbia).
Aquí yo ya me siento más en casa ¿eh? Es más europeo aquí.. en Barcelona. (...) El trato es más sensitivo, hay más tolerância (Meli, Barcelona, 31 anos, nascida na França).
Siento que hay muchas cosas en común, por ejemplo, cultural, por ejemplo en cuanto a la comida, por ejemplo, hay muchísimas cosas en común a la hora de darle un espacio importante a la comida, a la familia, veo muchísimas similitudes, ahora claro con los matices que puede haber (Ester, Barcelona, 32 anos, nascida na Venezuela).
Yo creo que Barcelona le lleva 100 años en cuanto a la tolerancia. Hay un mínimo de educación hacia la tolerancia, que no existe en nuestros países, desgraciadamente. Pero pasará el tiempo y bueno, ya mi nieto lo gozará (Ramiro, Barcelona, 33 anos, nascido no Peru).
As identificações com a Espanha são apontadas por migrantes do Mercosul, da Argentina e da Colômbia. É explicada pela constituição de laços afetivos no novo país (família, amigos), pela incorporação de elementos da cultura espanhola, por proximidades culturais sentidas e pela integração profissional.
Pienso que empecé a sentirme española, española, cuando me puse a vivir con mi pareja. Ya no quería más irme a vivir a Colombia. (...) Ya me traje a mi niña. Ya no estoy sola. Ya cuando tienes algo estable, no solamente trabajo, trabajo, trabajo, ya tienes un hogar, donde llegas, donde te esperan, está tu hija, pienso que las cosas te cambian tanto que te sientes identificada y te sientes española totalmente (Marisa, Barcelona, 45 anos, nascida na Colômbia).
Me siento dentro y me siento querida. En la parte profissional me siento valorada, me siento querida, y na parte humana los amigos también mucho (Sandra, Barcelona, 33 anos, nascida na Argentina).
A identificação com o país de origem e com a Catalunha aparece entre migrantes da América Latina (Argentina, Colômbia) e da Europa (Alemanha). Elementos considerados pelos migrantes ao explicar esta identificação apontam a incorporação da cultura catalã, a identidade regional e o sentimento de integração.
Sigo totalmente vinculado porque además mi familia está ahí, mis amigos están ahí y me sigo sintiendo argentino, lo que pasa es que cuando voy a Argentina no tengo esa situación de pertenencia real, supongo que es que hace siete años que estoy aquí y entonces supongo que estoy como a medio camino de desvincularme con uno y vincularme con el otro (Lucas, Barcelona, 30 anos, nascido na Argentina).
Del sitio de donde yo vengo, somos como los catalanes, como los vascos. En Antioquia y Medellín es la capital. Antioquia quiere independizarse pero no hay manera, igual que Cataluña y el País Vasco. Yo me siento muy, muy, antioquiano, más que colombiano. (...) Yo hablo catalán. Hay gente que dice para qué catalán, que es una tontería (Sergio, Barcelona, 22 anos, nascido na Colômbia).
No sé si me siento 50 por ciento catalana y 50 por ciento alemana. O en unos temas me siento más alemana y en otros, catalana. En los tópicos, me siento alemana, como la puntualidad, el hacer bien el trabajo, la previsión… Como catalana, también me identifico en tópicos, por ejemplo, cruzar la calle con el semáforo en rojo (cosa que un alemán en principio no haría), sensación de libertad (que en Alemania no) (Sara, Barcelona, 53 anos, nascida na Alemanha).
O número de migrantes identificados com o país de origem e, simultaneamente, com outros lugares em que viveram é pouco expressivo: quatro no total, dentre eles, um português e uma uruguaia hoje vivem em Porto Alegre; uma alemã e uma argentina hoje vivem em Barcelona. São migrantes que viveram por períodos longos em outros lugares e apontam ter incorporado elementos da cultura e/ou manterem relações afetivas nestes países. No contexto brasileiro, um destes migrantes se sente também identificado com o Brasil, o que não acontece no contexto espanhol. O depoimento a seguir ilustra este tipo de identificação:
Yo me identifico con Perú y Argentina porque son mis países ¿no? Eh... de hecho en cuanto a costumbres, hábitos, música más con Perú. Porque es donde he vivido más, desde los 14 años ¿no? Pero... tengo algo clavado que me dice tus orígenes... tu eres de Argentina no puedes olvidarte de aquello (Javier, Barcelona, 48 anos, nascido na Argentina).
Identificação intercultural
Ainda que pouco expressiva em termos percentuais, a identificação multicultural ou aberta aparece entre migrantes dos dois contextos, com maior presença no contexto espanhol. No contexto brasileiro é reivindicada apenas pelos migrantes provenientes dos países da América Latina; já no contexto espanhol aparece entre migrantes procedentes tanto da Europa quanto da América Latina. O traço comum entre estes migrantes parece ser a vivência de culturas diferentes através de variadas experiências migratórias que propiciam uma forte relativização cultural.
La pregunta de la identificación es difícil. Soy ciudadano del mundo… ¿Cómo me identifico yo? (...) Será un cliché, pero yo me siento ciudadano universal, será porque he vivido en tantas sociedades, que no me siento desarraigado en ninguna? (Jorge, Barcelona, 37 anos, nascido no Chile).
Me sinto una fusión y complejidad de todos los países donde ha vivido. Ni español, ni belga, ni brasileño. Si, me siento identificado con Brasil, aunque me siento una mezcla de todos los lugares que he estado, no podemos renegar de nuestro pasado (Alex, Barcelona, 31 anos, nascido no Brasil).
Quiero mi país, siento que es el lugar donde nací, claro que sí, me siento identificada, pero he aprendido que va má allá mi forma de ser (...) Me hace entender que puedes abrazar a un mundo mucho más, de más nacionalidades…soy un ser humano más… (Elena, Barcelona, 36 anos, nascida na Bolívia).
Bueno, soy yo de ahí (Inglaterra), pero es que he vivir tanto tiempo en diferentes sitios. Como yo veo el mundo, no soy la persona que ve que ciertas personas tienen que estar en un cierto sitio o no, no. Yo veo el mundo, no tengo problemas con ninguna personas moviéndose de un lado a otro, haciendo lo que sea. Pienso que entre los gobiernos a veces controlamos demasiado… (Jimmy, Barcelona, 24 anos, nascido na Inglaterra).
Eu não sei se sou o único que não é tão patriota assim, que para mim a pátria é onde moro. Se tenho um terreno aqui, moro aqui, tenho uma filha, independente de ser chileno, brasileiro. (...) eu acho que o mundo é da gente (Alberto, Porto Alegre, 45 anos, nascido no Chile).
O sentir-se migrante
A despeito dos projetos de integração formais (ou formalizados), muitos entrevistados não se reconhecem migrantes. É paradoxal na medida em que, também num grande número de vezes, o migrante seja definido de forma muito simples, como “aquele que está fora de seu país de origem”. Isto leva a crer que a migração é tida como algo entendido por experiência negativa e sofrida. Não havendo negatividade, portanto, não há migração. Dois pontos têm aqui boa incidência: de um lado, o tempo de permanência – quanto mais tempo estou vivendo fora de meu país de origem, menos sou migrante –; de outro lado, os papeles, as questões legais – “tenho documentos, não sou migrante”. Há uma distinção sendo feita também entre “ser migrante” e “ser estrangeiro”. Tais nuances são percebidas nos seguintes relatos:
Yo se que lo soy [inmigrante], más no veo que yo sea como el tipo de inmigrante que cree todo el mundo, que cree que es algo malo (Sérgio, Barcelona, 22 anos, nascido na Colômbia).
Yo no puedo decir que soy inmigrante porque puedo llamar por teléfono a mi família siempre que me apetece (Robert, Barcelona, 62 anos, nascido na França).
Porque estoy aqui y mañana estoy allá, porque estoy viajando, yo estoy de viaje, yo no me considero un inmigrante (Fernando, Porto Alegre, 48 anos, nascido no Chile).
Yo te puedo contestar que yo no soy inmigrante. Un inmigrante es la persona que se ha movilizado hacia un determinado lugar con el objectivo de vivir en ese lugar. Entonces una persona como yo que he venido a estudiar aqui, que ha venido de paso al princípio, su objetivo principal no es quedarse sino es venir a estudiar, venir a aprender cosas nuevas y todo esto. Y posteriormente si las circunstancias se dan se quedaria como me puedo quedar aquí como me puedo quedar en Peru. Entonces, con esa definición que yo tengo, yo no soy inmigrante (Manuel, Barcelona, 28 anos, nascido no Peru).
O país eu associo com uma organização administrativa de um estado. A terra é algo mais ambicional, um estado de sítio, onde crescestes, onde fostes educado, onde ganhastes uma certa identidade (Julio, Barcelona, 40 anos, nascido em Portugal).
A radicalização dessa posição anterior, manifestada também numa série de outras falas, é a idéia de que, se pensássemos bem, veríamos que as interações sociais, as dinâmicas societais miúdas, os hábitos cotidianos e as dificuldades do dia-a-dia são mais ou menos os mesmos, onde quer que estejamos. As diferenças culturais, na contemporaneidade – dizem nossos entrevistados –, seriam pequenas, quase integralmente desculpáveis, praticamente insignificantes, quando comparadas às rotinas existenciais. Por exemplo: perguntada sobre a particularidade cultural que o vincula tão visceralmente ao Chile, seu país de origem, Alberto, 45 anos, diz:
Acho que não tem nada. Eu acho que o mundo é da gente, porque eu tenho viajado e me dei conta que tem [sempre] as mesmas pessoas, do mesmo tipo de cabeça que eu tenho, ou de outros amigos, ou de outras pessoas, existem igual a lá, é a mesma coisa. Em todos os países é a mesma coisa: o povo é o que come mais, que ganha menos... Então é a mesma coisa, então é normal, é igual (Alberto, Porto Alegre, 45 anos, nascido no Chile).
Comentários semelhantes ao de Alberto não são poucos, todos eles indicando um esvaziamento ou uma dispersão da especificidade sociológica da temática da imigração. O tema das relações humanas torna-se mais abrangente, mais determinante e mais urgente. É o que fica sugerido a seguir:
Tu sabes que quando tu diz assim: ‘tu te sente boliviano, mais brasileiro’, no fundo, no fundo, falando tecnicamente, para nós dizermos se somos politizados, socializados e ainda mais saber que eu sou espiritualizado, não devo jamais usar só brasileiro, só boliviano, só isso. A casa é do ser humano (Raúl, Porto Alegre, 57 anos, nascido na Bolívia).
Nunca pienso en eso. Cada uno busca su lugar en el mundo... es que nunca sentí eso. Nunca me siento que no soy de un lugar, ni de outro. Tampoco es que tenga un arraigo muy fuerte con Argentina. En verdad, yo creo que no soy de un lugar. En realidad, no hay lugares físicos que digas vos sois de acá o así. Quizá haya como un sentimiento de libertad, como que hay un transito libre por el mundo, en el cual pueden haber diferentes costumbres. Pero justamente somos los que nos amoldamos (Fabián, Barcelona, 33 anos, nascido na Argentina).
Entonces de donde decimos que somos, de un color o de otro, si todo el mundo tiene una raiz andaluza, raiz árabe, una raiz judia, una raiz alemana o sudamericana. Busca detrás y siempre hay un abuelo, un tio, un padre que es inmigrante, que es igual que les pasa a los norteamericanos... Quien dijo que eran blancos? Son 50 mil colores... (Gisela, Barcelona, 51 anos, nascida na Colômbia).
Na verdade, as idéias da gente, latino-americanos, mudam muito; por causa disso, me sinto integrado com todas as culturas (Oscar, Porto Alegre, 42 anos, nascido na Argentina).
E haveriam ainda outras formas de definir o migrante. Outro de nossos entrevistados, o peruano Lorenzo, por exemplo, diz ser hoje “um cidadão internacional”. Fora de seu país de origem há muitos anos, alega que este “internacionalismo” “nem sequer é novo e que, na verdade, é muito comum”. Uns se dizem ainda “cidadãos do mundo”; outros, dizem que estão “de visita”; outros se dizem integrados demais para apresentarem-se como migrantes. Há assim uma diversidade enorme de formas de anunciar uma inadequação pessoal à imagem e à definição usual da migração. Antônio, migrante uruguaio, diz: “eu não me considero de ningun país”. “Qualquier lugar del mundo em que a gente está interiormente és lindo”, prossegue ele.
Esta hipersubjetivação da experiência migratória ganha tonalidades ainda mais fortes quando trazemos à tona a discussão sobre o sentimento de pertença relacionado aos projetos de integração regional, discussão que empreendemos a seguir.
A identificação regional: Mercosul e América Latina; Europa e União Européia
Poucas referências são feitas à constituição dos projetos de integração regional, o Mercosul e o Mercado Europeu. O migrante, ao menos aqueles que entrevistamos, embora esteja sempre se referindo à inserção no mercado de trabalho, dá a entender que vê os projetos de integração regional num plano mais formal, ainda muito distanciado de suas expectativas e necessidades mais efetivas. A constituição de tais projetos não parece colaborar para facilitar estratégias de identificação. É o que se percebe, por exemplo, na fala a seguir:
Yo te diría que no, [que no me siento] ni de la Unión Europea ni de Argentina, en estos momentos, ni de aqui ni de ahí, del aire... es una cosa un poco rara, volviendo a Argentina no me siento demasiado argentino, pero aqui tampoco no me creo catalán ni español ni europeo (Lucas, Barcelona, 30 anos, nascido na Argentina).
Quando nos deparamos com os dados que estão vinculados à relação de identificação e pertencimento ao Mercosul e à América Latina, um aspecto que se destaca está relacionado à clara distinção existente entre considerar-se como integrante do Mercosul e ser um latino-americano. O sentimento relacionado a ser latino-americano é muito mais ressaltado do que a condição de sentir-se parte integrante do Mercosul.
O sentimento de pertença ao Mercosul é salientado por 51,3% dos entrevistados8 em Porto Alegre, sendo que a explicitação do não pertencimento totaliza 48,7%. Já a identificação relacionada a ser latino-americano aparece em 80% dos entrevistados em Porto Alegre9, e em percentual ainda maior nos entrevistados em Barcelona (89,7%)10. Se analisados de um ponto de vista essencialmente percentual, pode-se observar que há uma paridade nas proporções entre os que se consideram e os que não se consideram do Mercosul, entre os entrevistados que vivem em Porto Alegre. Entretanto, se comparados o pertencimento ao Mercosul e à América Latina, tanto em Porto Alegre como em Barcelona, é perceptível a expressiva diferença existente entre as considerações relacionadas a essas duas formas de pertencimento. Essas manifestações carregam consigo a expressão de distintas representações identitárias, de diferentes naturezas e conformações, mas também estão muito vinculadas às realidades social, política e econômica vivenciadas pelos diferentes países latino-americanos, especialmente no que se refere ao Mercosul. Tais vinculações aparecem de forma muito nítida nas manifestações dos entrevistados quando explicam suas motivações para sentirem-se ou não parte do Mercosul. Isso fica evidenciado na expressão de Matias, morador de Porto Alegre:
no sé que és ser eso, el Mercosur. Que gente que quiere esa idea? Si. Pero son... Todo mundo quiere. Pero, só que no, no funciona. Então no sé quien se considera Mercosul. Apesar de los que se consideran de Mercosul son todos burocratas que le pagan al gobierno para venir aqui, a parte de tiempo, haciendo intercambio cultural. E de aqui para allá también. E você paga, eu pago e no dá em nada [...] (Matias, Porto Alegre, 46 anos, nascido na Espanha).
Essas manifestações acontecem, em parte, porque as pessoas não visualizam a presença nem mesmo a importância do Mercosul em suas vidas cotidianas. Não ocorre uma identificação clara das razões que gerariam o sentimento de pertença a essa comunidade. Nas manifestações expressas ficam claras essas operações na forma de se compreender e vivenciar o Mercosul, como ocorre no caso de Lina, 30 anos, nascida no Paraguai e moradora de Porto Alegre:
O Mercosul, na verdade, não funciona. Pra gente, assim. O que é que te favorece? Pra gente, estudante, então, qual é a função do Mercosul? Nada. É a mesma burocracia que tudo. Até pra dirigir. Eu não posso ter carro do Paraguai, sendo estudante e morando aqui. Porque resido aqui [...] (Lina, Porto Alegre, 30 anos, nascida no Paraguai).
O que os entrevistados percebem de uma maneira forte está relacionado aos objetivos do Mercosul enquanto projeto econômico organizado, com macro-objetivos, que, na maioria das vezes, não estão em correspondência com aquilo que os sujeitos vivenciam em suas trajetórias de vida. E que esses objetivos, na visão dos migrantes, passam muito mais por questões de ordem política e econômica, não são capazes de se traduzir em benefícios concretos para os cidadãos em geral, migrantes ou não. Nesse sentido, são ressaltadas ainda as manifestações que afirmam que, se o objetivo central do Mercosul fosse a integração cultural, seriam totalmente favoráveis, mas como reconhecem que isso não ocorre, mostram-se contrários e não cultivam o sentimento de pertença.
Já as pessoas que se consideram como parte do Mercosul não apresentam, em geral, argumentações claras, coerentes e explícitas para sustentar sua posição. Alguns citam as questões culturais e educacionais como positivas na existência do projeto, mas a maior parte dos entrevistados partidários do Mercosul apenas responde com um “sim” à pergunta “você se sente parte do Mercosul”? Poderia ainda ser considerado o fato de que tais manifestações também ocorrem em função do próprio fenômeno que gera a falta de identificação com o Mercosul. Além de não perceberem a participação prática da existência do bloco em suas vidas, muitas vezes não possuem informação suficiente para poderem tomar posição, seja ela contrária ou favorável. Para muitos, o Mercosul ainda é uma abstração.
As percepções e os sentimentos relacionados à América Latina seguem uma outra lógica, bastante distinta daquela estabelecida com as vinculações (ou ausência de vinculações) realizadas com o Mercosul. As expressões dos entrevistados estão muito mais carregadas de relações de pertencimento, identificação, até mesmo de orgulho de considerar-se um latino-americano, como ilustra o seguinte depoimento:
Sim, me sinto, me orgulho muito de ser latino, tenho um sangue latino forte [...]Tanto que sempre digo América do Norte, porque somos tão americanos quanto eles, sul americano, e parece que essa latinidade tem muito valor, uma certa nobreza, não nobreza no aspecto de trono, de castelo, da latinidade nobre no sentido da palavra (Fernando, Porto Alegre, 48 anos, nascido no Chile).
O latino-americano é construído então como um indivíduo forte, batalhador, com uma maneira particular de se relacionar, cooperativo, passional, trabalhador – características sempre ressaltadas como positivas pelos entrevistados. Ser latino-americano é um sentimento que, sem dúvida, traduz-se de uma maneira mais forte do que ser parte integrante do Mercosul, por exemplo.
No entanto, nesse conjunto de características onde o sentimento de ser latino-americano é ressaltado e enaltecido, existem algumas diferenciações. Para alguns entrevistados, essa identidade latino-americana por vezes complementa outras, mas também pode entrar em conflito. É o caso expresso por Damían, entrevistado em Barcelona e nascido no Brasil:
Eu não tenho essa ‘sou latino-americano’, não é uma expressão que eu uso, eu não uso ‘sou latino-americano’, mas me sinto, porque eu sou brasileiro, eu não tenho essa, eu não me sinto como, que eu sou europeu, eu me sinto mais brasileiro que sul-americano, que latino-americano. Sou, de fato sou, mas não muda [...] (Damían, Barcelona, 32 anos, nascido no Brasil).
O “ser latino-americano” precisa, muitas vezes, estar também atravessado por processos de negociação com a identidade do país de origem e com tantas outras formas de identificação que o indivíduo vai construindo ao longo de sua vida. Esses arranjos, sempre em processo, podem ser reforçados, negados ou simplesmente modificados, como é o caso de Bárbara, entrevistada em Porto Alegre, que exemplifica como pode acontecer esse movimento das identidades:
Agora, sim (sente-se latino-americana). Sabes porque te falo agora sim? Porque depois da crise que aconteceu na Argentina, a gente abriu os olhos e se deu conta que era latino-americano [...] (Bárbara, Porto Alegre, 54 anos, nascida na Argentina).
E existem ainda os casos onde a identidade latino-americana não consegue ser negociada com as demais, especialmente no caso em que a identificação com o país de origem se sobrepõe e sobressai ao restante. Em outros casos, há um tipo de negociação possível, onde a identidade do país de origem é “assumida” pelo país onde o indivíduo está vivendo. É o que expressa Desiré: “eu me considero mais da Bolívia, né? E agora do Brasil, já que estou aqui, né?” (Desiré, Porto Alegre, 57 anos, nascida na Bolívia).
Os movimentos que revelam o sentimento de pertença à Europa apresentam diferenciações bastante significativas entre os entrevistados em Porto Alegre e em Barcelona. Em Porto Alegre, a proporção daqueles que se consideram europeus é mínima, totalizando apenas 05% dos entrevistados11. Tais dados estão relacionados às migrações de países latino-americanos, onde o sentimento de “latinidade”, ou mesmo os laços com o país de origem, acabam sendo preponderantes: “No me considero (européia), apesar de ser de origem espanhola, tá? Que meus antepassados eram espanhóis, tá? Ma no me considero nem me vejo como europeu, eu me vejo como latina” (Margarita, Porto Alegre, 31 anos, nascida no Uruguai). Em meio a esse sentimento que prevalece nos entrevistados de Porto Alegre, relacionado a não considerar-se europeu, há casos que chamam a atenção justamente pela distinção. É o que ocorre com Martina, nascida na Alemanha. Mesmo vivendo há 69, dos seus 94 anos no Brasil, ela é reticente ao considerar-se totalmente alemã. Esse vínculo se mostra tão intenso que durante todo esse tempo de permanência no país, não aprendeu a falar o português e ainda comunica-se somente em alemão, tanto que a própria entrevista precisou ser intermediada pelo filho, que fez a tradução.
Já os entrevistados em Barcelona apresentam posições mais equilibradas quanto ao fato de se considerarem ou não europeus. Os números: 55% sentem-se europeus e 45% não se consideram12. Essa realidade se dá porque há um movimento de uma pequena parte dos entrevistados, provenientes da América Latina, que acabam incorporando o sentimento de ser europeu à sua identidade, e também, principalmente, porque os migrantes que vivem em Barcelona e nasceram em outros países da Europa se consideram, em sua grande maioria, europeus. No, no me considero europeo... bueno, si y no. Si porqué comparto la vida, la situacion geografica, las circunstancias demograficas, economicas, etc. Pero desde luego yo tengo un carácter diferente que es el que pude forjar en mi país que es esto de estar contento de estar asi, en este sentido, no me identifico como europeo. (Frank, Barcelona, 30 anos, nascido na Venezuela).
Si, europea si. Porque veo que en mi manera de pensar y de vivir es de una persona europea y no de África o de Asia o no sé. Por ejemplo, también como racionalizamos pero también como pasamos el día. Tengo amigos de Senegal, queridos amigos, y ellos se pasan el día por ejemplo, hacen una vida muy de clan, entre amigos, y entonces se ven a las 3 de la tarde todos juntos, cocinando [...] (Emma, Barcelona, 45 anos, nascida na Itália).
Nessas relações de pertencimento ou não, de sentir-se parte ou não de uma identidade, o que se revelam são as reflexões sobre aquilo que, de distinto, eu consigo perceber no outro. Nas entrevistas, tanto em Barcelona quanto em Porto Alegre, é possível perceber esse traço onde para considerar-se ou não como parte de determinada identidade, o indivíduo olha para o outro, ao passo que olha também para si, buscando perceber e relacionar o que lhe aproxima, o que lhe distingue. Nesse percurso, vai então estabelecendo seus parâmetros, juízos e considerações; nesse fluxo, passa a dizer “sou europeu”, “sou latino” ou, até mesmo, “sou um pouco de cada coisa”.
No que se refere às considerações relacionadas à União Européia, a sentir-se ou não parte dela, as posições dos entrevistados em Porto Alegre e Barcelona são mais aproximadas. Em Porto Alegre (entre migrantes provenientes da Europa), 79%13 das pessoas disseram não se sentirem como parte da União Européia. Em Barcelona, essa opinião foi compartilhada por 71%14 dos entrevistados. O que ocorre nesse caso é um fenômeno semelhante ao que pôde ser observado com relação ao questionamento sobre sentir-se ou não parte integrante do Mercosul. Por serem caracterizados para a grande parte das pessoas como movimentos de natureza mais política e econômica do que propriamente cultural ou social, tanto União Européia quanto Mercosul podem ser encarados como organizações exteriores aos indivíduos, onde não há uma participação cidadã efetiva. No caso da União Européia, as manifestações sobre o que ela representa e a forma como os indivíduos aí participam, parecem, no entanto, estar mais claras para os entrevistados que vivem em Barcelona. Isso também se vincula ao fato de muitos dos indivíduos migrantes serem provenientes de outros países da Europa. “Sí claro, bueno... primero lo veo en el sentido práctico, con la Unión Europea hay muchas más facilidades, como yo estoy viendo que personas de otros continentes tienen mucha más dificultades” [...] (Jisela, Barcelona, 35 anos, nascida na Alemanha).
No caso dos entrevistados em Porto Alegre e Barcelona, mas que são nascidos em países da América Latina, as opiniões sobre a União Européia não apresentam tão facilmente essa visão que consegue captar as facilidades vistas por quem nasceu e viveu em outros lugares da Europa. E ainda existe, tanto na questão de considerar-se europeu ou mesmo sentir-se parte da União Européia, aqueles que crêem que não há necessidade de sentir-se europeu. “No. Porque soy chileno [...] No necesito ser europeo. Soy tan feliz así” [...] (Charles, Barcelona, 24 anos, nascido no Chile).
Em meio a essa profusão de considerações e sentimentos, existem os indivíduos que consideram sua identidade, suas visões e percepções de mundo em constante movimentação, em permanente reordenação. Quando perguntados sobre o sentir-se europeu e/ou sobre suas vinculações (de participação ou mesmo afetivas em relação) à União Européia, se colocam em um curioso “meio termo”, onde não se situam muito afirmativamente nem de um lado e nem de outro. É o que se pode ver no seguinte relato:
(Sinto-me) Individuo…de mi casa y de mis cosas… pero no porque no me sienta integrado sino porque no tengo el concepto de ciudadano ni de participación porque la situación política del inmigrante es prácticamente nula, porque no votamos…se ven como un poco de afuera las decisiones políticas europeas económicas mas que en cosas concretas que nos suban los tipos de interés y no suban la hipoteca...no hay ese grado de involucrarse en Europa, que tampoco se involucran los ciudadanos de aqui (Lucas, Barcelona, 30 anos, nascido na Argentina).
O depoimento acima é oportuno também porque traz à discussão o tema das condições de cidadania, tal como percebidas, praticadas e sentidas por nossos entrevistados, questão que passamos agora a considerar.
Condições de cidadania
Muito embora os projetos de integração nacional sejam vistos como pouco significativos ou efetivamente pouco presentes no cotidiano dos sujeitos migrantes, acabam retornando e reaparecendo, de forma indireta e não totalmente explicitada (ou não manejada de forma plenamente consciente), quando o assunto em pauta nas entrevistas passa a ser justamente o tema da condição de cidadania. Esta incidência, ou esta maior operatividade do arranjo legal dos projetos de integração regional passa a ser mais sentida, sobretudo, entre os migrantes no contexto europeu, em função, por exemplo, do maior número de processos de naturalização. Entre os migrantes entrevistados em Porto Alegre, temos apenas três casos de naturalização; entre os que migraram para Barcelona, o número de casos passa de doze. Entretanto, além dos migrantes já naturalizados e também daqueles em vias de naturalização – no total, somados, são exatamente 17 casos –, são muito mais diversos e reveladores os modos como é apresentada e negociada a legitimidade da inserção cidadã nos países de migração atual.
Assim, o tópico sobre condição de cidadania revela-se muito oportuno – até estratégico, poderíamos dizer – para o entendimento das dinâmicas da integração migratória. Em primeiro lugar, porque é inseparável da explicitação das motivações pessoais mais fundamentais de cada um no processo migratório. Em segundo lugar, porque indica também o modo como cada país (Brasil e Espanha, no caso) tipifica, regula e prepara-se para a gestão política, a inclusão social e a regularização “burocrático-administrativa” do migrante. Em terceiro lugar, porque aqui se colocam em evidência também dinâmicas históricas e políticas que transcendem os marcos específicos (temporais e de abrangência) com os quais trabalhamos (as regiões da grande Porto Alegre e da cidade de Barcelona, na metade da primeira década do séc. XXI). Algumas dessas caracterizações remontam a processos políticos de largo curso (às migrações históricas e à colonização) e mesmo aos interesses dos mercados transnacionais (como é o caso, por exemplo, daqueles europeus que se apresentam como “migrantes comunitários” e, como tal, “menos migrantes” ou “migrantes de um tipo especial”).
Antes de avançarmos, não se pode esquecer que estamos considerando aqui os depoimentos obtidos. Importam-nos, fundamentalmente, as falas de cada sujeito sobre os modos como se inserem no universo das políticas e das leis de estrangeria, sobre os direitos que dizem ter adquirido (ou perdido) na condição atual de migrantes. Para além de qualquer tipo de pedagogia político-jurídica, interessa-nos ouvir e mapear apenas o processo subjetivo (com toda a margem de seus equívocos e imprecisões) de enfrentamento das normas e dos trâmites legais.
Dentre os migrantes no contexto brasileiro, três deles são naturalizados (o argentino Antônio, o chileno Fernando e o uruguaio Ramón). Sara, migrante uruguaia, diz estar tramitando seu pedido de naturalização. Além deles, também Lina, migrante paraguaia, afirmou querer naturalizar-se brasileira. Entretanto, reconhece que “isto é uma coisa que não se vê muito aqui”. Outro caso interessante, ainda referente à naturalização, é o do alemão Hans, para quem naturalizar-se implicaria na perda de certos benefícios conquistados no país de origem, como a aposentadoria. “Se eu me naturalizo”, diz ele, “perco minha cidadania inteira alemã, com direito à aposentadoria que eu já tô recebendo, e como a cidadania brasileira não é plena, têm certas coisas que não são plenas, mas prerrogativas de brasileiros natos...”. De qualquer forma, o título de brasileiro naturalizado é visto por todos eles como uma prova inconteste de entrega e integração à cultura e ao país de acolhida, geralmente motivada pelo longo tempo de estadia e pela constituição de família em solo brasileiro.
Mais freqüente, no Brasil, são os casos daqueles que se dizem “residentes permanentes”. No total, são mais de vinte migrantes que assim definem sua condição de cidadania. Ao lado destes, um grupo de 14 apresenta-se simplesmente como “regulares ou legalizados”, destacando, sobretudo, a aptidão e a licença legal conquistada para o trabalho na terra estrangeira. Os “residentes permanentes” são os que estão há mais tempo no país. “Regulares ou legalizados” são aqueles que passaram a viver no Brasil a partir do início dos anos 1990. “Não legalizados”, “ilegais” e “irregulares” 15 são ocorrências minoritárias: apenas três casos. Percebe-se entre estes dois últimos grupos (aqueles que se apresentam como “regulares ou legalizados”, de um lado, e “irregulares ou ilegais”, de outro) a disposição de viver ou a vivência mesmo da experiência migratória como experiência fundamentalmente transitória, de curto período. Daí a despreocupação, muito mais acentuada nos últimos, com a correta inserção na ordem legal. Estes, “os irregulares”, sequer escondem o tom jocoso e desafiador com que falam a respeito de sua própria condição de cidadania. Núria, migrante uruguaia, apresentada como “irregular”, dá, por exemplo, o seguinte relato: Tenho cinco filhos, meninas, só que estou achando muito difícil o negócio de, como se chama, burocracia. Pedem muitas coisas, sabe. É muito contratempo, não dão oportunidades. E quando aparece uma oportunidade, não te dão chance para mostrar as coisas. (...) É muita burocracia, sabe. É isso, é aquilo, é coisa para médico, é pra tudo. Lá no Uruguai tinha uma coisa, não sei se agora tá a mesma coisa, é só com identidade e o carnê de saúde e tu já estava empregada, com cartão de nascimento e identidade, já tá empregada. Aqui não, tem que fazer um monte de porcaria pra ti poder trabalhar (Núria, Porto Alegre, 36 anos, nascida no Uruguai).
Outro migrante uruguaio, Cosme, residente em Porto Alegre, também dá um depoimento interessante. Diz ele:
A documentação é um problema para mi, mas tem outros problemas além da documentação. A gente tem que procurar o sustento diário, né? Eu acho que a nossa pátria é a América Latina e eu não posso ser ilegal em minha pátria. Tu entendes? [Estou] em situação irregular, eu digo. Minha situação no é ilegal, tá! Por enquanto eu acho que isso é uma boa forma de definir nossa situação: situação irregular. E isso é só um problema. Trabalhando em situação irregular é difícil. Aqui vocês sabem que os salários no son muito altos, o nível de vida nos és muito bom, no sentido de que é difícil conseguir as matérias primas, né? Então, para um migrante em situação irregular é mais difícil ainda. Há o problema do idioma também. (...) Isso faz com que a gente determine prioridades na vida. Eu acho que prioridade é o fato de ter um lugar para morar, o fato de ter determinadas condições materiais. (...) Hoje la documentación és un elemento fundamental, mas no és o único. Tem outros, né? (Cosme, Porto Alegre, 38 anos, nascido no Uruguai).
Há, contudo, uma diferença importante: para “regulares ou legalizados” a experiência migratória apresenta-se como um projeto de vida em processo, um plano recente, em andamento (na média, estes são os migrantes com cerca de dez anos, ou menos, no país), sujeito ainda à reordenação e ao recuo. Aqui, regressar ao país de origem não é algo fora de cogitação. Já para os “irregulares ou ilegais”, a experiência migratória é um teste, uma experiência propriamente. Uma aventura, enfim. É quase turismo. O retorno à terra natal é questão de tempo. Em função do turismo, aliás, é que três outros migrantes no contexto brasileiro se apresentam. Dois deles falam a seguir:
Si, tengo visto de turista, sí, sí, sí. Porém, no momento, tengo que entrar e salir a cada três meses (Clara, Porto Alegre, 28 anos, nascida na Argentina).
Sobre minha cidadania no Brasil... Olha, de momento eu tenho que estar saindo a cada três meses. Para renovar o visto, porque eu tenho visto de turista, visto também el qual não me permite trabalhar. Mas agora, semana passada, saiu um convênio entre o governo uruguaio e o brasileiro pra gente legalizar nossa cidadania. A gente já começou a fazer o trâmite, só tem que pegar... Nós chamamos de carnet de buena conducta no Uruguai (Mauro, Porto Alegre, 27 anos, nascido no Uruguai).
No contexto brasileiro, chama atenção também, dentre os migrantes naturalizados, residentes permanentes e legalizados, o fato de que são relacionamentos afetivos estáveis (casamentos, filhos, famílias recém constituídas) que determinam, aceleram e consolidam o processo de regularização das condições de cidadania no país.
Já dentre os migrantes entrevistados em Barcelona, o que se percebe são algumas diferenças e particularidades importantes. A primeira delas, como já dissemos, é justamente a maior freqüência de processos de naturalização. No Brasil, registramos apenas três casos (e um quarto em andamento). Na Espanha, o número de naturalizações e duplas nacionalidades, somados (e incluídos aí os processos ainda em andamento), chega a 17, mais do que quatro vezes o registrado no Brasil. Todas as falas a seguir referem-se e detalham alguns destes casos:
Tiene doble nacionalidad: española y alemana. Tengo las dos, pero no sé si eso es legal o no. Van variando las leyes. Creo que si ahora me casara con un español, no sé si automaticamente sería sólo española (Sara, Barcelona, 53 anos, nascida na Alemanha).
Actualmente tengo en trámite la nacionalidad española, es más, tengo en trámite... ya me han llamado para... lo que llaman aquí juramentar la bandera. Es un trámite que ya hemos postergado mucho, porque luego de dos años de residencia ya puedes solicitar la nacionalidad. Y por tener un DNI mi jefe no me va a aumentar el sueldo, por lo tanto lo hemos dejado pasar, pasar... Hace dos años iniciamos el trámite y mi esposa ya tiene la nacionalidad y yo estoy a punto de tenerla (Javier, Barcelona, 48 anos, nascido na Argentina).
Ahora ya tengo que esperar la doble nacionalidad. Ahora cuando vaya a Argentina de vacaciones tengo que reunir un montón de papeles, partidas de nacimiento, originales, selladas... Sí, después de 2 años de residir legalmente, como latinoamericanos, podemos pedir la nacionalidad (Carmen, Barcelona, 27 anos, nascida na Argentina).
Sou española desde que nací porque mi padre es Cantabro, es español de Santander. Entonces cuando nací me inscribieron en Buenos Aires y también en el consulado español en Buenos Aires (Norma, Barcelona, 32 anos, nascida na Argentina).
Ahora tengo la nacionalidad española, la doble ciudadania. Isto ya quase un año. Siempre tuve permissión de residencia. Obtuve por tiempo, pasado dos años de residencia legal ya te outorgan a los argentinos la nacionalidad (Sandra, Barcelona, 33 anos, nascida na Argentina).
Yo tengo doble nacionalidad porque grácias a convenios que existen entre España y Peru, nosotros, a partir del 2° año de residentes, podemos gestionar la ciudadanía española. O sea, soy hispano-peruano (Ramiro, Barcelona, 33 anos, nascido no Peru).
Além dos casos (e/ou dos processos em andamento) de naturalização e dupla nacionalidade, as entrevistas realizadas em Barcelona indicam o seguinte quadro, no que diz respeito às condições de cidadania: 14 entrevistados apresentaram-se como “estrangeiros residentes permanentes”, 12 meramente como estrangeiros legalizados, apenas três como ilegais ou irregulares, cinco disseram possuir visto temporário ou provisório de turista, seis disseram-se migrantes comunitários e outros seis disseram possuir visto de estudante.
De modo semelhante aos casos de aquisição de condições de cidadania relatados pelos migrantes no contexto brasileiro, também percebemos, ouvindo ainda outras falas de migrantes em Barcelona, os atravessamentos subjetivos (a formação de casais, por exemplo), os interesses profissionais (a expectativa de ingresso no mercado de trabalho formal) e/ou de formação acadêmica (alguns migrantes vão renovando o visto de estudante até que possam substituí-lo pelo de residentes efetivos) impulsionando a busca pela integração no sistema legal. Assim como no Brasil, também não faltam críticas aos empecilhos e aos excessos da burocratização. Por exemplo:
De cidadania, sou brasileiro e ilegal na Europa. Sou imigrante e ilegal, indocumentado, (mas) entrei no processo de regularização. [...] E agora, no processo de regulamentação, tive que entrar como empregado doméstico, coisa que eu não sou, porque é a maneira mais simples de entrar; em teoria, mais fácil. É assim: o próprio governo te induz a fazer trampa (como se diz em castelhano), porque eles mesmos colocam um montão de entraves, um montão de obstáculos para que não se regularize o imigrante, mesmo as pessoas que já estão integradas. [...] Eu vim para trabalhar com música, eu tô integrado, eu trabalho, eu vivo do meu trabalho, do meu trabalho de música, só faço isso e tenho trabalho em quantidade suficiente para me manter aqui, só que oficialmente o governo coloca todas as limitações para eu, estando totalmente normal, não me regularizar, por obstáculos do governo (Damián, Barcelona, 32 anos, nascido no Brasil).
A opinião acima não é uma opinião isolada. Ainda outros migrantes, tal como o equatoriano Rafael, também acreditam “que las instituciones no dan la información necesaria, [e que] la situación para conseguir la regularización ha desmejorado mucho en el último tiempo”.
Líquidos, os modos e as estratégias pessoais de identificação, no Brasil ou na Espanha, não se deixam ainda reter, total ou facilmente, pelas sólidas instâncias de regulação e administração dos contatos interculturais.
Considerações finais
A questão quem é e como se sente o migrante, que norteou a nossa empreitada investigativa, permitiu-nos vislumbrar a complexidade da problemática migratória e do seu impacto em termos de configuração das identidades.
As definições dos entrevistados, relativas à pertença nacional, regional e à condição de migrante revelaram identidades de configurações diferenciadas. Somos desafiados a pensá-las enquanto produto da imbricação complexa de múltiplos fatores, de distintas ordens (macrocontextuais-microcontextuais): o macrocontexto da globalização, suas conseqüências econômicas e sociais e sua implicação nos movimentos de migração; os contextos regionais e sua expressão concreta no cotidiano dos sujeitos; os contextos nacionais de origem e de destino; as relações intra e interculturais vivenciadas cotidianamente na trajetória da experiência migratória; as práticas dos sujeitos nesta trajetória. Todos estes fatores se combinam diversamente, gerando múltiplos modos de identificação cultural destes sujeitos.
A despeito disto, é possível notar algumas tendências ou linhas de força nestes múltiplos modos de definição. Os relatos que examinamos permitem pensar que, nas condições de migração, o processo de identificação através do qual os indivíduos se articulam às identidades sociais se complexifica. Nestas condições, a constituição das identidades parece caminhar na direção apontada por Hall, no sentido de um descentramento que leva à constituição de identidades menos essencialistas, unificadas e mais posicionais, plurais e diversas. Hall fala em identidades em transição, ou traduzidas, noção que tenta indicar as formações identitárias que atravessam e intersectam as fronteiras naturais. Flagram-se assim sujeitos que continuam tendo vínculos significativos com seus lugares de origem e suas tradições, mas que são obrigados a negociar com as novas culturas em que vivem, que carregam traços das culturas, tradições e histórias particulares (Hall, 1999, 2000). Direção também apontada por Martín-Barbero (2006) que, refletindo sobre a formação das identidades no contexto da globalização, também alude a um descentramento das identidades. Não significa, entretanto, que a diferença não persista no interior da globalização, mas que a formação de identidades deve ser pensada no movimento.