Como muitos californianos, Daniel Kish gosta de andar de bicicleta, descobrir novas trilhas nas montanhas e convidar amigos para uma partida de basquete. Com uma diferença: Kish não enxerga. Ele utiliza um sentido semelhante ao sonar de morcegos e golfinhos para reconhecer o ambiente. Poucas pessoas – entre elas, alguns brasileiros – aprendem a “ver” com os ouvidos. E a ciência começa a entender o que elas têm de especial.
Kish foi o primeiro cego acreditado para guiar outros cegos nos Estados Unidos. Ainda bebê, um tumor na retina extirpou seus olhos. Com 2 anos, começou a estalar a língua. Com 10, adquiriu consciência da técnica que desenvolvera involuntariamente para conhecer o mundo. O barulho que sua boca produzia reverberava nas coisas e munia seu cérebro de dados valiosos: localização, dimensão e profundidade dos objetos, informação suficiente para alcançar uma grande independência.
Pesquisadores canadenses suspeitavam que cérebros de pessoas que dominam a ecolocalização não processariam informações auditivas de forma convencional. Com o auxílio de um sofisticado aparato de ressonância magnética funcional, mergulharam nos neurônios de Kish e ficaram surpresos com o que encontraram: os ecos são tratados como imagens na cabeça do americano.
A ciência confirmou assim as explicações do próprio Kish: “Parece complicado, mas não é. O cérebro já costuma produzir imagens usando ondas de luz.” Na ecolocalização, elas são simplesmente substituídas pelas ondas sonoras.
“Há muita informação sensorial nos ecos”, confirma Lore Thaler, da Universidade de Ontário Ocidental, no Canadá. “Mas não sabemos exatamente como é interpretada.” O estudo canadense foi publicado na revista PLoS One.
Brian Bushway, de 28 anos, também participou do experimento canadense. Uma atrofia do nervo óptico roubou sua visão há 14 anos. Desde então, aprendeu a utilizar a ecolocalização. Os cientistas queriam identificar possíveis diferenças neurológicas entre pessoas que deixaram de enxergar cedo ou em plena adolescência. Na prática, ambos apresentaram uma habilidade comparável, com ligeira vantagem para Kish.
Ivan Freitas, professor de educação física em São Bernardo do Campo, perdeu a visão aos 6 anos, vítima de um glaucoma. Hoje, tem 39. Como Kish, começou a estalar a língua cedo. Perdeu a conta das vezes que lhe disseram: “Para de fazer esse barulho, menino! Que irritante!” Ficava quieto por algum tempo e, depois, voltava aos estalos. “Era mais forte do que eu. Nem percebia que fazia aquilo para me localizar”, comenta.
A maioria dos brasileiros que utilizam a ecolocalização é como Freitas. Diferentemente dos americanos, não criaram teorias elaboradas para aprimorar a técnica. Surgiu com a naturalidade de uma descoberta involuntária.
Kish fundou a World Access for the Blind. O lema do grupo – “our vision is sound” – pode ser traduzido como “nossa visão é o som” ou “nossa visão é acurada”, ambiguidade que descreve bem o objetivo da iniciativa: ajudar deficientes visuais a utilizar a ecolocalização para aumentar sua autonomia. “Nossa principal bandeira: a técnica pode ser ensinada. É como aprender piano. Nem todo mundo conseguirá tocar no Carnegie Hall, mas muita gente pode aprender a tocar”, garante Kish. A organização percorre o mundo, dando palestras e cursos. Ao Estado, Kish disse que já recebeu convites para vir ao Brasil, “mas ainda não deu certo”.
Para o analista de sistemas Sandro Laina, de 30 anos, a ecolocalização foi o jeito que encontrou para brincar com os irmãos e os primos nas ruas de Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense. “Não queria ser diferente dos outros e sair tateando muros. Eu estalava os dedos e batia palmas para saber se tinha um poste ou uma parede à frente”, conta Laina, cego desde os 7 anos por um glaucoma que “nem 14 cirurgias conseguiram resolver”.
Laina começou a usar sua técnica nas corridas de pega-pega e logo passou para a bicicleta. Costuma seguir um dos irmãos ou amigos, enquanto pedala. Quando não tem “um guia”, fala sem parar, como forma de evitar os obstáculos. “Tenho certeza que essa minha experiência na infância me dá autonomia hoje para me locomover com mais segurança”, afirma.
Ex-aluno do Instituto Benjamin Constant, no Rio, Laina acredita que todos os cegos utilizam uma forma rudimentar de ecolocalização, mesmo sem perceber. “Basta colocar uma proteção de borracha na ponta da bengala de muitos cegos para deixá-los loucos”, afirma. “Eles usam aquele barulhinho da ponta rígida batendo no chão para identificar obstáculos.” Segundo Laina, tricampeão paraolímpico de futebol de cinco (para cegos), esportes podem aprimorar a percepção sensorial.
Cândida Castro recorda rindo suas aventuras com os três filhos na rua onde morava, no Rio. Subia na bicicleta e pedia para as crianças correrem ao seu lado batendo palmas, para que ela pudesse identificar os obstáculos. Ela aprendera a pedalar na adolescência, quando tinha baixa visão mas ainda não se tornara totalmente cega. Obviamente, os vizinhos ficavam perplexos com a cena.
Ela afirma que a informação sonora permite perceber dados espaciais de grandes dimensões. "Para a maioria das pessoas, o som do trovão é igual em qualquer cidade. Mas para um cego é diferente. Ele percebe claramente quando está em uma cidade pequena ou em uma grande cidade. Os prédios abafam o som", explica.
O som dos prédios mostrou a Aquanetta Underwood que seu filho Ben era capaz de "ver" com os ouvidos. Ele acompanhava a mãe no banco de trás do carro, com o vidro aberto. "Você viu aquele prédio enorme, mamãe?", perguntou. Viviam em Riverdale, na Califórnia. Ben foi considerado a pessoa com maior domínio da ecolocalização. Dispensava até mesmo a bengala. Morreu em 2009, com 16 anos, vítima do mesmo câncer que lhe roubara os olhos quando tinha dois anos de idade.
Mel Goodale, principal responsável pela pesquisa canadense, afirma que a ecolocalização em humanos permitirá uma melhor compreensão do fenômeno em morcegos e outros animais, pois pessoas podem verbalizar suas experiências. Kish, por exemplo, compara os sons que produz ao flash de uma câmera fotográfica: iluminam o mundo e permitem a fixação de uma imagem no cérebro.
Naturalmente, o cenário obtido não possui o grau de definição necessário para tornar verossímeis as aventuras do Demolidor – super-herói cego da Marvel que utiliza ecolocalização. A evolução fez com que golfinhos, por exemplo, levassem a estratégia ao estado da arte. Eles emitem 200 sons por segundo, o que permite uma enorme precisão. Seres humanos não conseguem mais do que 4 estalos de língua no mesmo período de tempo.
O fisioterapeuta paulista Luiz Carlos dos Santos sonha com um cão-guia. Enquanto ele não vem, costuma bater palmas para investigar o ambiente. Ele conta que, quando chega a um hotel, bastam algumas horas para fique a vontade, depois de explorar o local.
Mas Kish aponta vantagens da técnica. Como o som chega de todos os lados, ela permite uma “visão” de 360°. Além disso, informações auditivas são processadas com maior rapidez pelo cérebro.
Juan Antonio Martínez, da Universidade de Alcalá de Henares, em Madri, afirma que pessoas que veem também podem aprender a ecolocalização. "Para deficientes visuais em particular e para todos nós em geral, a técnica pode significar uma nova forma de perceber o mundo", afirma. Ele já desenvolveu pesquisas na área, procurando descobrir, por exemplo, quais sons produzidos pela língua são mais convenientes. "Treinar duas horas por dia durante duas semanas é o suficiente para distinguir se você tem um objeto na sua frente. Mais duas semanas e você consegue diferenciar árvores de um muro."
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